Séries de postagens

16/11/21

A ARTE HERÁLDICA (II)

Quanto mais se conhece a heráldica, mais se fica munido contra a repetição de clichês.

Na postagem anterior, dei um brasão tão singelo quanto possível: o campo com uma figura. Com efeito, quem atribui beleza às armas estatais da Espanha, por exemplo, por causa da esquarteladura, o escudete sobre tudo, as Colunas de Hércules, a coroa real, em suma, pela exuberância, se treinasse o seu olhar para enxergar aí não um todo unitário, mas um conjunto de unidades simples, começaria a perceber que esses casos consistem de armas compostas:

  1. O primeiro, de vermelho com um castelo de ouro, lavrado de negro, aberto e iluminado de azul (o campo com uma figura), que é de Castela, mais...
  2. o segundo, de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho, coroado de ouro (o campo com uma figura), que é de Leão, mais...
  3. o terceiro, de ouro com quatro palas de vermelho (o campo mais uma peça multiplicada), que é de Aragão, mais...
  4. o quarto, de vermelho com uma corrente de ouro, posta em cruz, aspa e orla e carregada de uma esmeralda de sua cor no centro (o campo mais uma figura), que é de Navarra, mais...
  5. um embutido em ponta de prata, carregado de uma romã de sua cor, aberta de vermelho, sustida e folhada de duas peças de verde (o campo mais uma figura), que é de Granada, mais...
  6. um escudete sobre o todo, de azul com três flores de lis de ouro e uma bordadura de vermelho (o campo mais uma figura e uma diferença), que é de Bourbon-Anjou.

Armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural.
Armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural.

Se um brasão é complexo sem se compor de vários, então algo não está bem. E na justa medida da complexão, o município de Fortaleza acolheu a ideia de Tristão de Alencar Araripe, mas trocou a cor do campo para eludir a semelhança com as citadas armas castelhanas e assentou o castelo sobre um mar. Na prática, houve mais uma mudança, como adverti na postagem de 15/08, pois embora a Lei n.º 1.316, de 11 de novembro de 1958, tenha copiado o ordenamento que Clóvis Ribeiro cita entre aspas em Brasões e bandeiras do Brasil (1933) e diz "castelo", sempre se desenhou uma torre. Portanto, até hoje as armas municipais de Fortaleza acham-se na estranha situação de terem uma descrição que diz uma coisa e reproduções que têm mostrado outra. Essa descrição é: "Em campo azul, um castelo de ouro, sobre ondas ao natural". O que se tem visto é: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar ao natural.

A vila destinada a ser a cabeça da capitania do Ceará foi fundada em 1699, mas por mais de um decênio em busca de maior segurança os colonos moveram a sua sede do entorno da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção para a barra do rio Ceará e a povoação do Aquiraz, onde ficou de vez desde 1711. Em 1725, criou-se outra vila com sede no povoado junto da Fortaleza, que lhe deu o nome. Foi elevada à condição de cidade em 1823. O seu brasão quase projeta a visão de quem chegava aí para desembarcar pela Ponte Metálica: a muralha e os baluartes da Fortaleza sobre o mar.

Portanto, o brasão de Fortaleza é singelo, belo e representativo. Acrescentaria, ainda, que a opção por armas falantes com a figura de um acidente natural lhe dá quase uma força poética. Apesar disso, há quem fique insatisfeito com a figuração desse acidente ao natural. Como pus na postagem de 24/02, algumas pessoas fazem da água em heráldica um cavalo de batalha. Não é erro iluminar qualquer figura de sua cor, absolutamente. Mas, como em tudo da vida, cabe cultivar o bom senso. Num brasão que tem apenas mais uma figura, uma muito habitual, é perfeitamente aceitável um mar ao natural, sobretudo pelo período histórico em que se criou tal brasão. Mesmo assim, como mero exercício, mostrarei e comentarei as outras opções.

Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de prata e verde.
Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de prata e verde.

Em várias ocasiões, argui que se procurarmos situar a heráldica na história da arte ocidental, conseguimos esclarecer várias coisas. Uma delas é que o estilo da nossa época, que chamo de convencional, resulta de um esforço deliberado em recobrar o estilo heráldico clássico, o qual fazia parte do quadro geral da arte românica. No campo específico da iluminura, a escola sucessora, o gótico, não divergia tanto, daí que até o século XVI se tenha tendido a figurar a água por listras ondeadas azuis e brancas, como se aprecia, por exemplo, no códice rico das Cantigas de Santa Maria (1280-84; vide particularmente o fólio 229v).

Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de verde, aguado de prata.
Ordenamento alternativo para as armas de Fortaleza: de azul com uma torre de ouro, lavrada e aberta de negro, assente num mar de verde, aguado de prata.

No entanto, durante a Idade Moderna a iluminura decaiu ante o avanço de outras técnicas, como a estampa ou a gravura, de modo que o gosto por reproduções cada vez mais naturalistas veio pressionando a heráldica até o começo do século passado. Como o brasão de Fortaleza é citado (sem a indicação da fonte) num livro de 1933, quando foi criado esse gosto ainda predominava. A própria armaria municipal portuguesa deve a sua abundância hodierna em pés ondados ao trabalho de Afonso de Dornelas, quem, no estágio inicial desse trabalho, preferia uma opção intermediária: o aguado, que consiste em semear o campo, a peça ou a figura de ondulações de esmalte diferente, à semelhança de marolas.

Um mar ao natural é figurado conforme o estilo do artista, seja mais naturalista seja mais estilizado. Eu  que não sou artista  ponho um pé ondado, semeio-o de linhas também ondadas e ilumino-o de um azul ou verde parecido ao que se tem por cor natural. A propósito, convém lembrar que  é o mesmo que campanha ou contrachefe. Quando o brasonamento diz um mar, entende-se que se trata dessa peça com os atributos especificados. Se se especifica que é ondado de tal metal e tal cor, então é formado por faixas ondadas contíguas, alternando esse metal e essa cor. Pode-se, ainda, especificar o número dessas peças, ou não; se não, fica a critério do artista. Nos casos dos ordenamentos alternativos que dou para as armas de Fortaleza, preferi iluminar o mar de verde porque é uma imagem consolidada na cultura cearense, desde que José de Alencar escreveu:

Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba.
Verdes mares que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros.
Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas.
Onde vai a afoita jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela?
Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora.
Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.
A lufada intermitente traz da praia um eco vibrante, que ressoa entre o marulho das vagas:
— Iracema!

Parágrafos, quase versos, que emocionam os filhos da Terra da Luz desde 1865.

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