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15/12/22

BICENTENÁRIO DA ORDEM DO CRUZEIRO: O LEGADO

As armas nacionais que a República assumiu foram inspiradas nas insígnias da Ordem do Cruzeiro.

A inspiração das armas nacionais nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro.
A inspiração das armas nacionais nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro.

O Cruzeiro do Sul é o símbolo nacional do Brasil, entendido como a figura heráldica mais representativa, tal qual as quinas para Portugal, o leão para a Bélgica ou a águia para a Alemanha. Essa constelação está no zênite da esfera celeste da bandeira nacional ("ponteada por vinte e uma estrelas, entre as quais as da constelação do Cruzeiro", na redação do decreto que a criou), é cantada no hino nacional ("A imagem do Cruzeiro resplandece"), deu nome à moeda nacional durante longos períodos no século passado e, é claro, figura nas armas nacionais: de azul com cinco estrelas de prata postas como a constelação do Cruzeiro do Sul e uma bordadura de azul, perfilada de ouro, carregada de vinte e sete estrelas de prata.

Insígnia da Ordem Civil do Cruzeiro. A coroa imperial foi substituída por uma estrela vermelha dentro de uma coroa de cafeeiro e tabaco e a efígie e o nome de Dom Pedro I, pela efígie e pelo nome da República (vide a postagem de 24/09; imagem de exemplar à venda no Mercado Livre).
Insígnia da Ordem Civil do Cruzeiro. A coroa imperial foi substituída por uma estrela vermelha dentro de uma coroa de cafeeiro e tabaco e a efígie e o nome de Dom Pedro I, pela efígie e pelo nome da República (vide a postagem de 24/09imagem de exemplar à venda no Mercado Livre).

Como eu disse na postagem de 18/09, os criadores da bandeira e das armas nacionais que o governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca adotou pelo Decreto n.º 4, de 19 de novembro de 1889, foram muito inteligentes ao trocarem a cruz da Ordem de Cristo pelo Cruzeiro do Sul, ou melhor, a insígnia de uma ordem pela de outra. Aquela contrariava o ideal de separar o estado e a igreja (vide a postagem de 09/09); esta era tão prezada pelos militares que, convertida em Ordem Civil do Cruzeiro, escapou à abolição de "todos os títulos, foros de nobreza e ordens honoríficas estabelecidos pelo antigo regime",  que o mesmo governo operou pelo Decreto n.º 277-F, de 22 de março de 1890, embora não tenha resistido à nova constituição (art. 72, parágrafo 2.º), promulgada em fevereiro do ano seguinte. Com efeito, o Marechal Deodoro era dignitário da Imperial Ordem do Cruzeiro e chegou a despachar que as armas nacionais continuassem, substituindo-se a coroa pelo Cruzeiro (vide a postagem de 24/09)

Cédula de 5.000 mil cruzeiros (1990), em que se veem as armas nacionais, e moeda de 1 real (1998-atual), em que se vê o Cruzeiro do Sul.
Reverso de uma cédula de 5.000 mil cruzeiros (1990), em que se veem as armas nacionais, e moeda de 1 real (1998-atual), em que se vê o Cruzeiro do Sul.

No entanto, a cruz da Ordem do Cruzeiro não era a constelação desse nome, mas se formava das dezenove estrelas que representavam as províncias nas armas nacionais. Bem entendida essa diferença, é surpreendente que na literatura heráldica brasileira não se tenha percebido a semelhança das armas assumidas pela República com a insígnia dessa ordem, a não ser vagamente por Tristão de Alencar Araripe no artigo Brasões do Brasil (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, número 83, 1891): "Este emblema parece antes a forma da venera de uma condecoração do que a de um brasão". Comparemo-las ponto por ponto:

  • Como a medalha, o escudo é redondo e tem uma bordadura, para a qual se moveram as estrelas, enquanto no campo se pôs a constelação que dava nome à ordem;
  • também como a medalha, o escudo está sobre uma estrela;
  • tal como na insígnia, esse conjunto fica sobre uma coroa de cafeeiro e tabaco
  • e como na placa, todo o conjunto repousa sobre um resplendor.

Conclusão: Artur Sauer inspirou-se fortemente nas insígnias da Imperial Ordem do Cruzeiro ao criar as armas que a República assumiu e perduram, tanto que o legislador caiu no exagero ao ordenar na Lei n.º 5.700, de 1.º de setembro de 1971, o campo de azul-celeste, cor que esmaltava a medalha da Ordem do Cruzeiro, porém inexistente na heráldica luso-brasileira. Corrobora-se, pois, a interpretação de que a espada era um afago aos militares, que derrubaram a monarquia e tutelavam o novo regime, e o listel com o topônimo e uma data magna é um elemento de heráldica duvidosa, como comentei na postagem de 24/09.

Insígnias da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. São iguais às da Ordem Civil do Cruzeiro, mas se retirou a estrela vermelha (imagem publicada pela Embaixada da Polônia em Brasília no Twitter).
Insígnias da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul. São iguais às da Ordem Civil do Cruzeiro, mas se retirou a estrela vermelha (imagem publicada pela Embaixada da Polônia em Brasília no Twitter).

Em 1932, outro governo provisório, dessa vez sob a chefia de Getúlio Vargas, restabeleceu, pelo Decreto n.º 22.165, de 5 de dezembro, a Ordem do Cruzeiro com o nome de Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, cujo regulamento foi aprovado pelo Decreto n.º 22.610, de 4 de abril de 1933. No entanto, é lamentável que a mais antiga e mais alta das ordens honoríficas do Brasil, que premiou os próceres da Independência aquando da sua criação, tenha sido reduzida a "galardoar os estrangeiros, civis ou militares, que se tenham tornado dignos do reconhecimento da Nação Brasileira". A ordem que inspirou os nossos símbolos nacionais e hoje ostenta a figura principal deles deveria ter permanecido fiel ao seu estatuto, reconhecendo "distinto serviço militar, civil ou científico" do cidadão brasileiro, antes súdito do Império.

Na verdade, parece que o momento das ordens honoríficas passou. Hoje em dia recebem pouca atenção e menor crédito, principalmente em regimes presidencialistas como o nosso, em que o chefe do estado é o mesmo eleito para governar e amiúde honorifica não pelo mérito, mas pela política ordinária.

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