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12/10/22

BICENTENÁRIO DA ACLAMAÇÃO DE DOM PEDRO I

Bicentenário da aclamação de Dom Pedro I.

"Aclamação de Dom Pedro I imperador do Brasil". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital). R
"Aclamação de Dom Pedro I imperador do Brasil". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Há duzentos anos, Dom Pedro de Bragança foi aclamado imperador constitucional do Brasil e seu defensor perpétuo. Até então, o estatuto do país fora o mesmo que tinha desde 1815: um reino, desde abril de 1821 sob a regência do dito príncipe e desde 7 de setembro não mais unido a Portugal. Todos esses fatos, decorrentes da transferência da Corte para o Rio de Janeiro, tornaram a história do Brasil tão singular na conjuntura continental desse período que não muito tempo antes, em fevereiro de 1818, houvera outra aclamação na mesma cidade: a de Dom João VI.

O herdeiro da Coroa portuguesa assumia a dignidade régia assim que o predecessor morria, mas com a dilação necessária à preparação apropriada se celebrava em seguida a cerimônia que marcava o começo do novo reinado: a aclamação. Como eu disse na postagem de 12/09, os reis portugueses não eram coroados, mas aclamados pelos "grandes, títulos seculares e eclesiásticos e mais pessoas que se achavam presentes". Na verdade, desde a Restauração sequer cingiam a coroa, já que Dom João IV tomou Nossa Senhora da Conceição por padroeira do Reino e se fez vassalo dela.

As crônicas registram que os reis portugueses eram alçados ou levantados desde o próprio Afonso Henriques. Os termos alçamento e levantamento referem à ascensão ao trono, encenada como uma subida até uma cadeira sobre um estrado. O relato de Rui de Pina sobre o levantamento de Dom Duarte (1433) na sua crônica é a descrição mais antiga da cerimônia, que foi bastante singela até o fim da segunda dinastia, celebrando-se poucos dias após a morte do rei predecessor. Foi sob a Casa de Bragança que se tornou mais pomposa e, por conseguinte, demandou mais preparação.

Insígnias régias de Dom João VI. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).
Insígnias régias de Dom João VI. Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Mas nenhuma aclamação demorou tanto quanto a de Dom João VI: quase dois anos. Com efeito, celebrá-la no Rio equivalia a manifestar da maneira mais altíssona a resolução de permanecer definitivamente no Brasil. Consequentemente, a cerimônia não marcaria apenas o começo do novo reinado, mas também a refundação da monarquia portuguesa como um império transcontinental. Isso fica provado pela renovação das próprias insígnias régias: além da coroa, que mencionei na dita postagem de 12/09, e do manto, que mostrei na de 22/02/2021, o cetro era rematado pela esfera armilar, símbolo do Brasil.

"Aclamação do rei Dom João VI no Rio de Janeiro". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).
"Aclamação do rei Dom João VI no Rio de Janeiro". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

A cerimônia de aclamação reflete o princípio mais firme do Antigo Regime: a estabilidade social. Creditava-se a natureza divina da monarquia à sua origem cruzada (daí que para a aclamação de Dom João VI se tenha escolhido o dia 6 de fevereiro, véspera da festa das Cinco Chagas do Senhor, em memória do Milagre de Ourique) e a legitimidade da sucessão à sua natureza hereditária, mas a cada início de reinado convinha renovar o pacto entre o soberano e os vassalos. Assim, depois de subir o estrado, se sentar no trono e tomar o cetro, encenação da assunção da dignidade régia, todos ouviam a prática de um orador e, em seguida, procedia-se aos juramentos. O que Dom João VI fez, ajoelhado perante um missal aberto e uma cruz deitada nele e com a mão direita sobre esses objetos, está testemunhado desde Dom João II (1477):

Juro e prometo com a graça de Deus vos reger e governar bem e direitamente e vos administrar direitamente justiça quanto a humana fraqueza permite e de vos guardar vossos bons costumes, privilégios, graças, mercês, liberdades e franquezas que pelos reis, meus predecessores, vos foram dados, outorgados e confirmados.

Em contrapartida, o vassalo jurava o seguinte:

Juro aos Santos Evangelhos, tocados corporalmente com a minha mão, que eu recebo por nosso Rei e Senhor verdadeiro e natural o muito Alto e muito Poderoso, o Fidelíssimo Rei Dom João VI, nosso Senhor, e lhe faço preito e homenagem, segundo o foro destes Reinos.

A cerimônia compunha-se mais de gestos que de falas. Excetuando-se os juramentos, somente três participantes intervinham oralmente: o rei de armas Portugal, o orador (na aclamação de Dom João VI, o desembargador do Paço) e o alferes-mor. O primeiro bradava "Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos!" antes da prática e da aclamação propriamente dita, que cabia ao terceiro e cuja fórmula está atestada desde Dom João I (1385): "Real! Real! Real! Pelo muito Alto e muito Poderoso Rei Dom João VI, nosso Senhor!".

"Vista do exterior da varanda da aclamação do rei Dom João VI no Rio de Janeiro". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).
"Vista do exterior da varanda da aclamação do rei Dom João VI no Rio de Janeiro". Desenho de Jean-Baptiste Debret e litografia de Thierry Frères, 1839 (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

A heráldica estava, portanto, superpresente: na decoração da varanda erguida para a ocasião ao longo do antigo Convento do Carmo no Largo do Paço (hoje Praça XV de Novembro); nas insígnias régias; nas pessoas dos oficiais de armas; no estandarte real, tão significativo que fazia do seu portador, o alferes-mor, o aclamador. Este o levou enrolado até o alto do estrado e aí ficou até o juramento do infante Dom Miguel, após o qual o desenrolou e assim o empunhou ao aclamar o rei, primeiro do lugar onde estava para os presentes dentro da varanda e depois na sacada do arco principal para o povo na praça.

Revisar a aclamação de Dom João VI (para detalhes, leia-se o plano das ordens, publicado pelo Arquivo Nacional) é fundamental para situar e compreender a de Dom Pedro I. Desta lavrou-se uma ata, publicada na coleção das leis de 1822. Segue:

ATA DA ACLAMAÇÃO DO SENHOR DOM PEDRO, IMPERADOR CONSTITUCIONAL DO BRASIL E SEU PERPÉTUO DEFENSOR, EM 12 DE OUTUBRO DE 1822.
No fausto dia 12 do mês de outubro de 1822, primeiro da Independência do Brasil, nesta Cidade e Corte do Rio de Janeiro e Palacete do Campo de Santa Ana, se juntaram o Desembargador, Juiz de Fora, Vereadores e Procurador do Senado da Câmara comigo, Escrivão abaixo nomeado, e os homens-bons que no mesmo têm servido e os mesteres e os procuradores das câmaras de todas as vilas desta província adiante assinados para o fim de ser aclamado o Senhor Dom Pedro de Alcântara Imperador Constitucional do Brasil, conservando sempre o título de seu Defensor Perpétuo ele e seus augustos sucessores, na forma determinada em vereação extraordinária de 10 do corrente. E achando-se presente a maior parte do povo desta Cidade e Corte, que cobria em número incalculável o Campo de Santa Ana, aonde também concorreram os corpos de primeira e segunda linha da Guarnição desta mesma Cidade e Corte, às dez horas da manhã foi o mesmo senhor, com sua Augusta Esposa e a Senhora Princesa Dona Maria da Glória, recebido no sobredito palacete, entre mil vivas do povo e tropa, pelo Senado da Câmara, homens-bons e mesteres desta cidade e procuradores das câmaras das vilas referidas, tendo o estandarte com as novas armas do Império do Brasil o ex-Procurador do Senado da Câmara Antônio Alves de Araújo. Foi apresentada ao mesmo senhor a mensagem do povo desta província pelo Presidente do Senado da Câmara, que lhe dirigiu a fala, mostrando que era vontade universal do povo desta província e de todas as outras, como se conhecia expressamente dos avisos de muitas câmaras de algumas delas, sustentar a Independência do Brasil, que o mesmo senhor, conformando-se com a opinião dominante, tinha já declarado, e aclamar o mesmo senhor neste fausto dia Imperador Constitucional do Brasil e seu Defensor Perpétuo, conservando sempre ele e seus augustos sucessores o título de Defensor Perpétuo do Brasil. Sua Majestade Imperial e Constitucional dignou-se dar a seguinte resposta: "Aceito o título de Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, porque tendo ouvido o meu Conselho de Estado e de Procuradores-Gerais e examinado as representações das câmaras de diferentes províncias, estou intimamente convencido que tal é a vontade geral de todas as outras, que só por falta de tempo não têm ainda chegado". Sendo esta resposta anunciada ao povo e tropa da varanda do sobredito palacete, aonde todo este ato se celebrou, foi o mesmo senhor aclamado legal e solenemente pelo Senado da Câmara, homens-bons e mesteres, povo e tropa desta cidade e procuradores das câmaras de todas as vilas desta província, levantando o Presidente do mesmo Senado os seguintes vivas, que foram repetidos com entusiasmo inexplicável por todo o povo: "Viva a nossa Santa Religião! Viva o Senhor Dom Pedro I, Imperador Constitucional do Brasil e seu Defensor Perpétuo! Viva a Imperatriz Constitucional do Brasil e a Dinastia de Bragança, imperante no Brasil! Viva a Independência do Brasil! Viva o povo constitucional do Brasil!". Findo este solene e majestoso ato, foi Sua Majestade Imperial e Constitucional acompanhado debaixo de pálio à Capela Imperial, aonde estava disposto um Te Deum solene em ação de graças. E de tudo para constar se mandou fazer esta ata, em que assinou Sua Majestade Imperial e Constitucional e o Senado da Câmara, com os homens-bons e mesteres e procuradores das câmaras das vilas desta província. E eu, José Martins Rocha, Escrivão da Câmara, a escrevi. IMPERADOR.

Sabe-se que Dom Pedro pretendia aguardar mais tempo até a sua aclamação. De fato, não havia ainda uma casa real ou imperial nem corporação de oficiais de armas que pudessem executar um cerimonial segundo a tradição portuguesa. Além disso, o Antigo Regime ruíra e não havia mais "bons costumes, privilégios, graças, mercês, liberdades e franquezas" a serem "dados, outorgados e confirmados" nem se devia ao monarca  "preito e homenagem". O exagero do "Viva o povo constitucional do Brasil!" demonstra o quanto se rechaçava o absolutismo. Na verdade, aclamou-se o príncipe regente imperador constitucional sem se ter ainda uma constituição. A conjuntura não recomendava o prolongamento da regência, de modo a evitar qualquer revés no processo de separação.

Por tudo isso, escolheu-se uma data próxima apropriada — o aniversário de Dom Pedro — e improvisou-se uma cerimônia que exprimisse a natureza da tal monarquia constitucional, daí que em vez de pomposa edificação no Terreiro do Paço se tenha preferido o palacete que pertencera a Marcos de Noronha e Brito, conde dos Arcos e derradeiro vice-rei do Brasil, e que então servia de sede à Câmara do Rio de Janeiro (hoje da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ). Como a assembleia constituinte e legislativa que se convocara em junho ainda não se tinha instalado, foi preciso ressignificar as câmaras municipais: os seus procuradores não representariam mais o terceiro estado do Reino (a burguesia), mas todos os cidadãos, sem distinção de foro.

Apesar disso, no dia seguinte o decreto que ordenou a intitulação imperial patenteou o moderado liberalismo do monarca e seu ministério: "Dom Pedro, pela graça de Deus e unânime aclamação dos povos Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil". Como se o adjetivo constitucional não bastasse, a mais que inovadora locução por unânime aclamação dos povos deixava claro que, antes mesmo de a futura constituição delimitar os poderes do estado, já se assumia a soberania da nação. Em contraposição, a locução pela graça de Deus preservava a natureza divina da monarquia, ideia tão característica do Antigo Regime.

Estandarte da Câmara do Rio de Janeiro durante o primeiro império, segundo Clóvis Ribeiro em Brasões e bandeiras do Brasil (1933). Será o fabricado para a aclamação de Dom Pedro I, portanto o primeiro exemplar da bandeira nacional, que por se ter conservado foi entendido como assumido pelo município?
Estandarte da Câmara do Rio de Janeiro durante o primeiro império, segundo Clóvis Ribeiro em Brasões e bandeiras do Brasil (1933). Será o fabricado para a aclamação de Dom Pedro I, portanto o primeiro exemplar da bandeira nacional, que por se ter conservado foi entendido como assumido pelo município?

A ambiguidade entre as velhas ideias e as novas guiaria Dom Pedro I até a outorga da Constituição de 1824, que a infundiu na própria monarquia brasileira. Essa ambiguidade sobressai em um dos aspectos mais significantes do regime: a heráldica. A propósito, um dos problemas que a pressa impôs à aclamação de Dom Pedro I foi a falta de exemplares da bandeira nacional, afinal ainda não fazia nem trinta dias que o decreto da sua criação fora lavrado. Mesmo assim, a ata registra que Antônio Alves de Araújo, ex-procurador da câmara carioca, empunhou então "o estandarte com as novas armas do Império do Brasil". É possível que tenha sido o primeiro exemplar da bandeira do Brasil.

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