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09/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: AS ARMAS DOS ESTADOS (II)

Além da qualidade estética, La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... é um documento singular da história da heráldica.

Texto introdutório do cortejo dos gentis-homens (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Texto introdutório do cortejo dos gentis-homens (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Nas postagens de 25/04 e 01/05, eu disse que o arauto Pierre de Vernois custeou em parte a publicação de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... e o rei de armas Tosão de Ouro presidiu ao cerimonial do funeral e das exéquias que esse livro descreve e retrata. Com efeito, o arranjo de tantos objetos armoriados deixa ver o refinamento que fazia a fama da corte borguinhona. Assim, a sequência dos títulos que os cavalos e as bandeiras representavam no cortejo dos gentis-homens não era nada aleatória. Atentemos à variante castelhana da intitulação régia que o próprio Filipe II veio estabelecer:

Rey de Castilla, de León, de Aragón, de las Dos Sicilias, de Jerusalén, de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valencia, de Galicia, de Mallorcas, de Sevilla, de Cerdeña, de Córdoba, de Córcega, de Murcia, de Jaén, de los Algarbes, de Algecira, de Gibraltar, de las Islas de Canaria, de las Indias Orientales y Occidentales, Islas y Tierra Firme del Mar Océano, Archiduque de Austria, Duque de Borgoña, de Brabante y de Milán, Conde de Habsburgo, de Flandes, de Tirol y de Barcelona, Señor de Vizcaya y de Molina. (1)

Percebe-se que houve uma inversão exata e muito inteligente: como o rei ia quase ao fim do cortejo, quanto maior a precedência do título, mais perto dele andavam as respectivas armas. Ao mesmo tempo, ao estarem à dianteira e entre arautos, as armas não hispânicas não só ganharam destaque, mas também, sendo de feudos, se igualaram às de reinos.

Pranchas n.os 7 e 8 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 7 e 8 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Observa-se, ademais, o cuidado em se fazer uma seleção de tantos títulos. Como a nave Vitória arvorava as bandeiras das armas borguinhonas e austríacas de menor precedência e que não figuravam, portanto, nas armas pessoais de Carlos V, bastou representar os títulos hispânicos até o reino de Córdova. Mesmo assim, cabe lembrar que ao redor do castelo da popa a nave tinha escudos armoriados e a gravura de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... permite reconhecer aí as armas da Córsega e da Biscaia, entre outras. Como o desenho mostra apenas um lado, não se sabe quais armas estavam no resto do contorno, de modo que a seleção acaba sendo uma hipótese.

Pranchas n.os 9 e 10 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 9 e 10 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Seja como for, alguns fatos tornam certo que a reprodução de tantos brasões se apoiou na consulta de um armorial. Como eu já disse, apenas os títulos de maior precedência compunham as armas pessoais do soberano, logo alguns dos demais brasões não se viam facilmente em selos, bandeiras ou moedas. Um arauto neerlandês do século XVI não os podia conhecer senão pelo estudo e, de fato, aqueles da corte borguinhona estavam entre os mais versados na sua arte, de tal modo que folheando o armorial do marechal de armas Charolais (2), descobrem-se sem demora coincidências com a pompa fúnebre de Carlos V.

Pranchas n.os 11 e 12 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 11 e 12 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Neste ponto, é preciso distinguir como as monarquias dos avós do imperador se expandiram e essas expansões se refletiram no plano heráldico.

As Casas da Áustria e da Borgonha dilataram-se principalmente por alianças dinásticas. Mesmo quando disputavam domínios pelas armas, procuravam dar à aquisição a aparência de uma transmissão por direito. Daí que os Habsburgos tenham preterido as suas próprias armas (de ouro com um leão de vermelho, armado, lampassado e coroado de azul) por aquelas dos Babenberge (a faixa de prata em campo de vermelho) quando lhes sucederam no ducado em 1278 e Filipe o Ousado tenha esquartelado as suas armas pessoais (de azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma bordadura composta de prata e vermelho) com aquelas da primeira dinastia ducal (o bandado de ouro e azul com uma bordadura de vermelho) quando recebeu a Borgonha em 1363. Trocando em miúdos, cada título que os dinastas austríacos e borguinhões adquiriam ou pretendiam aportava-lhe as armas de uma linhagem que governara o respectivo senhorio.

Pranchas n.os 13 e 14 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 13 e 14 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Muito diferente é o caso dos reinos hispanos. Primeiro, porque alguns já se tinham unido antes de a heráldica surgir: os reinos de Leão e da Galiza desde 914; o reino de Aragão e o condado de Barcelona desde 1137. Depois, porque todas as terras ao sul dos rios Ebro e Douro foram conquistadas ao Islã. Em mais de um momento, esse domínio fragmentava-se em vários estados  — as taifas —, cujos chefes se estabeleciam nas cidades maiores e se intitulavam mulūk (malik no singular), isto é, 'reis' em árabe. Ao vencê-los, os príncipes cristãos tomavam-lhes os títulos, mas não tinham brasões, pois, por mais que os armoriais fantasiassem, a heráldica era um sistema semiótico da Europa ocidental. Na verdade, alguns títulos  como os reinos dos Algarves, de Algeciras e Gibraltar  sequer correspondiam a unidade administrativa alguma. Ademais, tanto a Coroa de Aragão como a Coroa de Castela também se expandiram além-mar, aquela no Mediterrâneo e esta no oceano.

Pranchas n.os 15 e 16 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 15 e 16 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

As armas reais aragonesas ilustram bem essa problemática. Estão entre as mais antigas de toda a heráldica e, fosse como conde de Barcelona, rei de Aragão, de Valência, de Maiorca ou da Sardenha, eram as únicas que o seu titular trazia: era o senyal reial. Assim, todas as suas combinações com outros emblemas foram inventadas pela literatura heráldica para distinguir cada um desses títulos e foram difundidas pela mudança de percepção que cada vez mais desvinculava certas armas da pessoa de um príncipe ou senhor e as vinculava ao território: a composição com a cruz de São Jorge (de vermelho em campo de prata) para a Catalunha; com a cruz de Alcoraz (de São Jorge cantonada de quatro cabeças de mouro; ela mesma para a Sardenha) e de Íñigo Arista (pátea e de pé aguçado de prata no cantão destro do chefe em campo de azul) para Aragão; com a cidade de prata em campo de azul para Valência; a sobreposição da cotica de azul para Maiorca.

Pranchas n.º 17 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 17 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

A exceção confirma a regra: a Sicília foi o único estado aragonês que teve genuinamente armas próprias. É fácil de explicar: em 1282, quando o parlamento desse reino elegeu Pedro o Grande para suceder aos extintos Hohenstaufen, estes tinham trazido uma águia de negro em campo de prata. Como cadetes da linhagem real aragonesa governaram a ilha por longo tempo (de 1296 a 1409), houve efetiva necessidade de um brasão diferente, daí a esquarteladura em aspa do senyal reial com as armas dos Hohenstaufen sicilianos. (3)

Pranchas n.º 18 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 18 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Por todo o razoado, é justo reconhecer que La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... não é apenas uma bela obra da perspectiva estética, mas também um documento relevante para a história da heráldica, pois além de testemunhar a consolidação da mudança referida, pela qual se passou a perceber que certas armas pertenciam ao principado ou senhorio, não mais ao príncipe ou senhor, independentemente da sucessão dinástica, revela que foram ocasiões como os funerais régios, em que se empregava a heráldica para se exibir a extensão da monarquia, que tiravam certas invenções dos armoriais, trazendo-as para a vida real.

Pranchas n.os 19 e 20 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.os 19 e 20 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Precisamente, é isso que permite saber qual armorial se consultou. As armas de que os príncipes e senhores usavam eram tão reproduzidas que até variações aceitáveis na armaria clássica deram lugar a um ordenamento fixo. Por exemplo, o número das palas do senyal reial dependia do espaço para reproduzi-lo, mas depois se fixou em quatro. Em contrapartida, brasões oriundos da própria erudição heráldica continuaram a divergir grandemente de uma reprodução para outra, porque as fontes permaneciam manuscritas, raras e a sua qualidade refletia a perícia do autor. Por exemplo, a figura principal das armas galegas é um cálice, mas há reproduções em que aparece coberto ou um cibório ou uma custódia, com o acompanhamento de cruzetas, contáveis ou incontáveis, ou sem ele.

Voltando, pois, ao Armorial Charolais, ao se topar aí com as armas do rei da Galiza ("le roi de Galice", f. 79r), logo se desconfia de que tenha servido de fonte à pompa fúnebre de Carlos V: "azur à le galice couvert, l'escu semé de croix recroisetées au pied fiché", isto é, "azul com um cálice coberto, o escudo semeado de cruzes recruzetadas de pé aguçado". É claro que se acham mais coincidências:

  • Para representar a Frísia, na pompa fúnebre de Carlos V preferiram-se as bandas de prata, carregadas de folhas de nenúfar de vermelho, em campo de azul, em vez dos dois leopardos de ouro em campo de azul, semeado de bilhetas deitadas do mesmo (depois fixadas em sete, postas duas, duas e três). O armorial Charolais dá ambas (folhas 4v e 72r), mas remonta as primeiras aos paladinos de Carlos Magno (f. 110v).
  • O escudo da Biscaia na nave Vitória traz as armas da Casa de Haro (4), tal como se dão no Armorial Charolais (f. 79r): de prata com dois lobos passantes de negro, alinhados em pala, e uma bordadura de vermelho, carregada de aspas de ouro ("argent à deux loups de sable, à la bordure de gueules, chargée de sautoirs d'or"). Quando Carlos V morreu, já se usava o ordenamento que se consolidou na Idade Moderna: os lobos sobrepostos a uma árvore (ou esta entre eles), a bordadura de ouro e, no lugar das aspas, leopardos (aleonados) de vermelho.
  • As armas dos reinos andaluzes eram as mesmas das cidades que lhes davam nome, as quais traziam, por concessão régia, uma bordadura composta de Castela e Leão. Na pompa fúnebre de Carlos V, a bordadura das armas de Córdova é castelada, assim como no Armorial Charolais (f. 79r), ainda que este a brasone de azul, castelada de prata.
  • Também na nave Vitória, há um escudo com uma tartaruga que o Armorial Charolais (f. 91v) atribui ao rei de Bugia (5). Ora, essa cidade foi ocupada por Castela de 1510 a 1555. 

Enfim, quanto à qualidade, o desenho de Hieronymus Cock está à altura da melhor iluminura heráldica no seu tempo e é na coloração dessas bandeiras, maiores que as da nave Vitória, e gualdrapas que se aprecia o excepcional trabalho feito no exemplar da Bibliothèque nationale de France, no qual se observa o esmero em pormenores como os esmaltes diferentes das línguas e unhas dos leões e as portas e frestas do castelo.

Notas:
(1) "Rei de Castela, de Leão, de Aragão, das Duas Sicílias, de Jerusalém, de Navarra, de Granada, de Toledo, de Valência, da Galiza, de Maiorcas, de Sevilha, da Sardenha, de Córdova, da Córsega, de Múrcia, de Jaén, dos Algarves, de Algecira, de Gibraltar, das Ilhas de Canária, das Índias Orientais e Ocidentais, Ilhas e Terra Firme do Mar Oceano, Arquiduque da Áustria, Duque da Borgonha, de Brabante e de Milão, Conde de Habsburgo, de Flandres, do Tirol e de Barcelona, Senhor da Biscaia e de Molina." (tradução minha)
(2) O próprio autor apresenta a obra assim: "Ce livre traite des armoiries des grands du monde, assemblés de maints pays par le commandement de Monseigneur le Duc l'an 1425" ("Este livro trata dos brasões dos grandes do mundo, reunidos de muitos países pelo comando do Senhor Duque no ano de 1425"). Não obstante, é conhecido apenas pela cópia que Philippe-Nicolas d'Aumale, marquês de Haucourt, fez em 1658 (códice 4150, conservado na Bibliothèque nationale de France). O marechal de armas Charolais em 1425 era ninguém menos que Jean Lefèvre de Saint-Rémy, o primeiro rei de armas Tosão de Ouro (1430).
(3) O mesmo se pode dizer sobre as armas do reino de Nápoles. Na verdade, quando o parlamento siciliano elegeu Pedro o Grande, o reino da Sicília abrangia tanto a ilha que lhe dava nome como também o sul da península e era governado pelo conde Carlos de Anjou, filho póstumo de Luís VIII da França, o qual trazia o semeado de flores de lis de ouro em campo de azul, diferençado por um lambel de vermelho, mais as armas reais de Jerusalém, cujo título comprara a Maria de Antioquia em 1277. Fora coroado rei da Sicília em 1266, depois de destronar Manfredo, o derradeiro dos Hohenstaufen, com o apoio do papa Urbano IV, mas mesmo depois de ser vencido por Pedro o Grande na ilha, preservou sob o seu domínio a parte peninsular, continuando a usar o mesmo título, ao qual se somou a pretensão à coroa húngara desde 1390, daí o faixado de vermelho e prata.
(4) O senhorio da Biscaia foi incorporado na Coroa em 1370, quando Afonso XI de Castela o recebeu de Joana Manuel de Villena, sua mãe.
(5) Hoje Béjaïa (Bijāya em árabe), Argélia.

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