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08/11/21

O CURIOSO CASO DAS ARMAS DOS LEIS, LEIRAS E LIRAS

Na Idade Média o brasão fora um identificador pessoal, mas na Idade Moderna chegou a identificar até quatro linhagens.

Como não pretendo divulgar neste blog os dois armoriais oficiais que se seguiram ao Livro da nobreza e perfeição das armas — o Tesouro de nobreza (1675), de Francisco Coelho, e o Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva , pela escassez de valor artístico, vou hoje abordar uma curiosidade dessas obras que me chamou a atenção.

Como ressaltei na postagem de 01/10, o Livro do Armeiro-Mor é muito escrupuloso ao identificar o titular de cada brasão, dando inclusive o "nome completo" do armígero quando não se trata do chefe de uma linhagem de nobreza ancestral. O Livro da nobreza e perfeição das armas segue o mesmo procedimento, mas a ênfase na linhagem se torna evidente. Declara, além disso que "outros havia que num soo escudo se nomeavam duas linhagens; assi mesmo foram apartadas".

Tudo isto contrasta fortemente com a forma de identificação praticada no Tesouro de nobreza e no Tesouro da nobreza de Portugal. A especificação da palavra chefe desaparece e procura-se designar apenas linhagens, no plural: Noronhas, Eças, Pereiras, Castros, Coutinhos etc. Não se trata de dizer o mesmo de jeito diferente; trata-se, efetivamente, de dizer outra coisa: a heráldica gentilícia lusófona do século XVII ao fim das monarquias é uma "heráldica de sobrenomes" (apelidos no português europeu).

Ainda mais curioso é o fato de que no Tesouro de nobreza começaram a aparecer vários casos de brasões atribuídos a mais de uma linhagem. Não são armas homomorfas, como as três faixas de vermelho em campo de prata dos Silveiras e dos Pestanas, o que Antônio Godinho também discerniu no Livro da nobreza e perfeição das armas (o timbre dos Silveiras é um urso de prata, armado e lampassado de vermelho, nascente de uma capela de silvas de sua cor; o dos Pestanas, um leopardo de prata, armado e lampassado de vermelho). São casos em que o mesmo escudo e timbre são identificados por dois sobrenomes, como Bastos e Bairros, Borrego e Cordeiro, Madeira e Medeiros. Desses casos, um sobressai não só porque o brasão chegou a ser atribuído a quatro sobrenomes, mas porque o próprio ordenamento foi alterado por três vezes.

Primeiras armas dos Leis: coticado de prata e ouro de doze peças.
Primeiras armas dos Leis: coticado de prata e ouro de doze peças.

Quase no fim do Livro do Armeiro-Mor, mais precisamente à folha 131, há um escudo coticado de prata e ouro de doze peças. São as armas dos Leis. Afonso Eduardo Martins Zúquete, no seu Armorial lusitano (1961), diz que os Leis são uma família desconhecida, ainda que algumas pessoas se tenham chamado Das Leis, o que deve ter sido mais uma alcunha habitual entre letrados que propriamente um sobrenome. Com efeito, não consta na Antroponímia portuguesa (1928), de José Leite de Vasconcelos, e no Dicionário onomástico etimológico da língua portuguesa (1984), José Pedro Machado registra Ley e dá-lhe origem francesa. De fato, na França há vários lugares denominados Lay, do latim lacus 'lago', além do sobrenome (Le) Lay, do latim laicus 'leigo'.

Segundas armas dos Leis: de ouro com seis coticas de prata, perfiladas de azul.
Segundas armas dos Leis: de ouro com seis coticas de prata, perfiladas de azul.

Seja como for, à folha 37 do Livro da nobreza e perfeição das armas volta a aparecer o mesmo sobrenome, mas as armas, que no Livro do Armeiro-Mor combinam metal com metal, infringindo a regra de iluminura, figuram reformadas: de ouro com seis coticas de prata, perfiladas de azul. Por timbre, dá um leão nascente de ouro, armado e lampassado de azul, carregado das peças das armas. Mas como se a emenda parecesse imperfeita, Francisco Coelho retocou-a: no Tesouro de nobreza (fol. 60) vê-se de ouro com cinco coticas de azul. Além disso, agora a titularidade é tripla: "Liras, Leis e Lis".

Terceiras armas dos Leis, também dos Leiras e Liras: de ouro com cinco coticas de azul.
Terceiras armas dos Leis, também dos Leiras e Liras: de ouro com cinco coticas de azul.

Um ou outro desses casos se deve efetivamente à variação da língua: Roboredo, Reboredo e Reboledo são variantes a partir do latim roburetum 'mata de carvalhos' (robur). A generalidade consiste, porém, de vocábulos que ou compartilham apenas a mesma raiz, como Campos e Campelo, ou não têm nenhuma relação etimológica, por mais que se assemelhem, como Madeira e Medeiros (medeiro é um lugar onde há medas). Alguns chegam a acumular várias paronímias e homofonias, como Gomide com os substantivos comuns agomia ou gomia e agomil ou gomil e os topônimos Gomide e Gomil.

Assim, Martins Zúquete começa por evocar um antepassado francês para os Lis, mas depois reconhece que esse sobrenome pode ter-se originado do rio Lis, que banha a cidade e o distrito de Leiria, hipótese que Machado prefere. Origem toponímica tem também Lira: trata-se da paróquia desse nome, situada no concelho galego de Salvaterra de Miño, cujo senhor, Afonso Gomes de Lira, passou para Portugal em meio às guerras de Dom Fernando I contra Castela, quem o fez fronteiro-mor da raia com a Galiza e alcaide-mor de Braga, tudo conforme o Armorial lusitano. Segundo Machado, esse topônimo tem origem pré-romana. A grafia Lyra, pseudoetimológica, deve-se à homofonia com o instrumento musical, do latim lyra.

Armas dos Lises: de ouro com sete coticas de verde.
Armas dos Lises: de ouro com sete coticas de verde.

Enfim, o Tesouro da nobreza de Portugal (fol. 128, n.º 28) consolida o escudo de ouro com cinco coticas de azul (todavia, o leão do timbre figura rampante) para os Liras, mas omite os Leis e agrega os Leiras. O Armorial lusitano afirma que nada se sabe sobre esses Leiras, a não ser a própria associação que a literatura heráldico-genealógica faz deles aos Leis e Liras. O Dicionário onomástico etimológico recolhe Leira e Leiras e explica que ambos vêm de topônimos frequentes em Portugal e na Galiza, nomeados a partir do substantivo comum leira, talvez do latim glarea 'cascalho'. Por outro lado, Frei Manuel dá aos Lises (fol. 133, n.º 47) um escudo de ouro com sete coticas de verde e, por timbre, um leão nascente de ouro, bandado de verde, armado e lampassado do mesmo. Observa, não obstante, que "alguns trazem as bandas de azul, assim no escudo como no timbre".

Agora procuremos entender tudo isso. Embora constem apenas as armas dos Lises em cartas de brasão a dois irmãos em 1778 (n.os 352 e 597 do Arquivo heráldico-genealógico, do visconde de Sanches de Baena), a partir da mera vivência de cidadão e residente de um país lusófono, eu diria que o mais comum desses sobrenomes é Lira. Parece confirmar essa impressão o fato de que é o único deles ao qual se buscou um genitor ilustre. Apesar disso, está claro que as armas dos Liras resultam de seguidas intervenções no ordenamento primitivo das armas dos Leis. O fato de estas serem armas a inquirir e o de estarem quase no fim do Livro do Armeiro-Mor indicam que o seu titular naquele momento, quem quer que fosse, fazia parte do estrato mais baixo da nobreza.

A legislação heráldica mais antiga de Portugal — a carta pela qual Dom Afonso V fez do rei de armas Portugal o oficial de armas principal em 1476 (leia-se a postagem de 11/01— contém uma disposição muito interessante:

E porém mando aos meus Chanceleres e escrivães da minha Chancelaria e a quaesquer outros reis d'armas que acontecendo que algũa carta de armas a sua mão vá, nom sendo certificadas que per ele, dito Portugal, fôrom ordenadas e em seu livro registradas e assentadas e pintadas, tal carta nom a selem nem passem em maneira algũa. E em caso que passem, não sendo lembrados desta minha carta ou em outra qualquer maneira, quero que as ditas cartas d'armas nom sejam valiosas e o dito rei d'armas as possa ordenar a outro qualquer que eu novamente der armas.

A ideia de certas armas pertencerem a dois ou mais titulares praticamente subverte a heráldica na sua forma clássica, em que o brasão era um identificador pessoal. Certamente não é o que se lê no trecho citado, em que a concessão de mesmas armas a outrem servia de punição a quem as trouxera indevidamente. Mesmo assim, essa possibilidade  não explícita nas Ordenações do Reino, pois que falam apenas da perda das armas próprias  parece ter ensejado o fenômeno da múltipla titularidade.

Nesse sentido, é possível que a obscura linhagem dos Leis estivesse extinta na segunda metade do século XVII, quando os autores aperfeiçoaram a correção das suas armas. Acharam, então, nos Liras candidatos aptos à perpetuação delas, salvando-as da obsolescência. Como de um vocábulo para o outro há considerável distância, meteram os Leiras e os Lises na história. É provável que os Leiras nunca tenham tido armas próprias; ganharam acidentalmente as dos Leis na sua terceira versão quando o seu sobrenome serviu à etimologia falsa Leira > Lira. Em contrapartida, os Lises tinham sim as suas, mas as semelhanças abundam de tal modo que levam à desconfiança de que se ordenaram deliberadamente diferenças sutis para criar outro brasão dentro do mesmo processo a partir das armas dos Leis.

É verdade que todo esse razoado não passa de conjecturas. Mas não resta dúvida de que o efeito o torna plausível: a partir de uma linhagem antiga, porém desconhecida e finada, três outras entraram no armorial oficial não por meio de concessões novas, mas como se viessem de fidalguia imemorial. Isso coaduna plenamente com a ideologia dominante em matéria nobiliária, genealógica e heráldica do século XVII em diante: fingir que todos os membros da nobreza descendiam de antepassados honrosos levava à crença numa estabilidade social permanente. Em suma, todos eram sempre os mesmos e estavam onde deviam, há séculos.

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