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03/10/21

O LIVRO DA NOBREZA E PERFEIÇÃO DAS ARMAS (I)

O prólogo do Livro da nobreza e perfeição das armas é um documento precioso da história da heráldica portuguesa.

Fólio 2r: Prólogo.
Fólio 2r: Prólogo.

Prólogo dirigido ao muito Alto e muito Poderoso el-Rei Dom João, o terceiro deste nome e quinto décimo dos reis de Portugal.

Per Antônio Godinho, seu escrivão da Câmara.

Muito Alto e muito Poderoso Rei e Senhor, dito é de Platão que se a virtude com os olhos corporaes se visse, geraria amor de si mesma. E por isso os poetas e sábeos trabalharam de a ensinar decrarando-a per metáforas, fingimentos de figuras, pera o entendimento e coração a milhor sentir e conceber. Os antigos faziam estátuas com que muito encendiam os ânimos nela, segundo Salústio e outros autores. E porque nos prêmios que os príncipes dão aos bons a proporção é necessárea, segundo as calidades dos méritos, cousa conveniente foi os que sinaladas virtudes fazem serem sinalados com imagens de insines armas, com as quaes, guardando a imortalidade de suas famas, seus socessores tevessem obrigação de os imitar, que muita parte dos homens se movem mais pola fama que per outra virtude. E vendo nas crônicas se nom escrever de todos e dos que se escreve serem brevemente recontados seus feitos, nom se tratando dos privilégios, liberdades, que per cartas dos reis lhes foram dadas quando os nobilitaram, tinham em costume, por suas memóreas se nom perderem, assi como de as acrecentar com virtuosos e memoráveis feitos, com expresso cuidado fazer registar as armas de suas nobrezas nos livros dos reis delas perfeitamente, requerendo-lhes fezessem as árvores de suas genealogias, satisfazendo-os segundo seu regimento.

Parece que por se nom fazer nestes Reinos como convinha, caiu em tanto esquecimento esta devida lembrança e tão sem ela vieram a usar delas uns que inorando as diminuíam, outros que ressabendo as acrecentavam, outros que com proveza, frouxidade ou cruel ventura as desemparavam que, se el-Rei, vosso padre, que Deus tem, o nom oulhara, aquerindo pera si o despacho que dantes era nos reis d'armas, encarregando-se disso como de cousa sua, nom fora muito eles delas ficarem alheios. E buscadas per seu mandado em livros, sepulturas, edefícios e lugares em que se achavam, delas e as dos reis cristãos, mouros e gentios o livro grande houve cópea.

Fólio 2v: Prólogo.
Fólio 2v: Prólogo.

Per cima disso, tomada enformação dalguns oficiaes d'armas, que às cortes do emperador, rei de França, Castela, Ingraterra enviou ver o que se lá costumava, achou ser necessáreo corregerem-se muitas que desconcertadas pola corrução do longo tempo eram. E convinha darem-se timbres a todas, por serem já perdidos e se nom acharem, cuja míngua e defeito Sua Alteza querendo prover (que ao rei convém dar o timbre e nom o que cada um quer tomar, como alguns cuidam), lhes deu os mais nobres que se dar podiam, mandando-as aqui assentar em toda perfeição, per suas antiguidades e como no dito livro se acharam, acrecentando antes em muitas cousas que, minguando algũa, guardando as insines regras, pola seguinte maneira:

  • São os chefes das linhagens obrigados a trazer as armas dereitas, assi como foram dadas ao primeiro que as ganhou, e os outros com as deferenças que seus graos requerem, que o al seria desordem e baxeza daquele que honrar se quisesse de honra nom sua. Antes, devia ter aquela vergonha que diz Plínio no capítolo da honra da pintura terem os romãos que socediam as casas dos passados em que ficavam suas armas sôbolas portas, por entrarem cada dia no trunfo alheio e haver por mais qualquer menos escudo seu que outro que se contradiz, de maneira que esta regra quis se guardasse primeiramente antre os senhores ifantes, vossos irmãos, segundo pelos labéus se mostra, mudaram-lhe os timbres, porque despois de Sua Alteza ter vistos os livros e parecer de seus reis d'armas, houve por bem o timbre real se nom trazer sem mudança, posto que nas outras linhagens assi nom fosse.
  • E os que traziam armas reaes esquarteladas trouvessem suas bastardias. Querendo-o ainda escusar-se, não se achará que nos reis se nom purgavam. Nem o esquartelado bastava pera deferença.
  • A regra dos outros timbres é tirarem-se dos escudos, havendo neles cousas de que se possa fazer, ou darem-lhos dalgũas conformes aos apelidos.
  • E assi se fez a tôdalas armas per outra regra que manda nom trazer metal sobre metal nem cor sobre cor: se vereficaram muitas que falsas andavam, podendo-se presumir nom serem verdadeiras.

Também havia no livro algũas que, separados os escudos de ũa maneira, serviam três e quatro linhagens, como são Silveiras, Pestanas, Leitões, Coutinhos, Fonsecas, Tavares e outros, sobre as quaes houve oupenião que as deferençassem, pera cada ũas serem per si conhecidas. E achando-se as taes linhagens procederem ũas doutras, nos timbres somente se dividiram pelo modo já dito. Outros havia que num soo escudo se nomeavam duas linhagens. Assi mesmo foram apartadas.

Fólio 3r: Prólogo.
Fólio 3r: Prólogo.

As novas que se acharem com elmos abertos vão per modo d'antiguidade, polo livro se fazer pera muito tempo e irem nomeadas nos decendentes dos que as ganharam, os quaes até o quarto grao as nom podem fora dele assi trazer. Em todos os outros brasões os elmos se abriram, que sendo as linhagens mui antigas, estavam çarrados.

Fezeram-se oito escudos em cada folha, como estão no grande do meio por diante, pola ordem em que o começo ia demandar demasiada altura e convinha ser manual e portátil, pera com ele Sua Alteza despachar as armas e se lembrar das linhagens e o ter por registo delas. Outras muitas cousas se emendaram, que seria dilatoso dezerem-se.

E por este livro nom ser ainda acabado quando Deus levou el-Rei, Vossa Alteza, nom esquecido de dar fim às cousas per ele começadas, o mandou acabar. E com ele nom ousarão alguns fazer confusão com os apelidos que as gentes de povo costumam tomar ou poer per desdém uns a outros e despois pedem armas e as hão individamente. E em Vossa Alteza oulhar por tal devassidade, faz mercê aos grandes e fidalgos e nom pouca justiça, que a honra que uns ganharam per virtudes, grandes serviços e acrecentamento dos reinos, injusta cousa é outros per engano a haverem, com grão prejuízo de povo, que na sojeição dos pedidos fica.

Nem terão rezão de se agravar aqueles que teverem armas mal havidas ou as quiserem haver, pois é cousa tão notórea Vossa Alteza haver-se mui liberalmente nisso nobilitado muitas pessoas com singulares armas e com outros, nom usando riguroso exame, por naturalmente haver na condição de Vossa Alteza esta excelência, além das outras em que também nom som dino falar, folgar de dar honra a toda pessoa que lha pede e a merece, como se manifesta pelos grandes de seus reinos, que fez maiores; fez muitos perlados condes e muitos fidalgos do Conselho, e a outros deu o dom e a muitas molheres, fazendo de muitos cavaleiros fidalgos, e de piães cavaleiros, honrando com o háveto de Nosso Senhor Jesu-Cristo grande número de pessoas. Nunca dovidou acrecentar a cavaleiros e escudeiros nom somente àqueles a que vinha per foro, mas aos que em outros tempos se nom costumava fazer, pois quem vir os livros das moradias e tenças que tem dadas com os passados, ficará mui espantado de tanta nobreza. E os filhamentos sem moradias: a que fim foram senão ter gosto de honrar pessoas? Digam os teólogos, canonistas, legistas, outros leterados e estudantes quanta honra e mercê houveram por nobilitar com isso os povos. Confessem as cidades seus acrecentamentos e as vilas, quantas delas fez cidades e outras notáveis, e as aldeas, quantas delas fez vilas, pois os edefícios nom se podem negar suas manificências. E que nom vimos restauradas as vitruicas medidas, que de tantos anos a esta parte, por nom haver tanta grandeza de ânimos que as conservassem, pereceram? Nom negarão as ilhas e terras de seus senhorios quão nobilitadas de perlados e sees, com dinidades e moesteiros, são e de outros previlégios. Privilegiando no defender das sedas pessoas despriveligiadas, pera que honradamente e como cavaleiros podessem viver. Lembrou-se da nobreza dos estrangeiros em seus reinos moradores, mandando saber e assentar suas armas, procurando acrarar algũas linhagens escuras em as ter, por se nom acharem nos livros nem delas haver pessoas conhecidas. Nom ouso tocar em suas maiores grandezas, temendo o provérbio de Apeles: "Ne super crepidam sutor judicaret" (1).

Fólio 3v: Prólogo.
Fólio 3v: Prólogo.

E bem sei que Vossa Alteza, posto que com verdadeira especulação sinta e entenda as cousas de ciência e arte, a muita grandeza sua lhe faz dissimular a fraqueza dos engenhos daqueles que o servem nelas, mas por esta obra ser cousa que se há de mostrar e o tachar é fácil e o fazer, difícil, humilmente lhe peço que, lembrando-lhe alguém os defeitos dela, se lembre que ainda se nom viu pintura perfeita nem em outras artes quem em tudo acertasse. Nem duvido haver pessoas a que pareça mal os liões, águeas e outras figuras nom serem postas ao vivo, mas a arte das armas é pintarem-se com ferocidade sobrenatural grandes nembros, bocas, unhas e corpos delgados, estendidas à feição dos escudos, terços, quartos e outras repartições, que desacompanhadas pareceriam mal e pior as figuras encolhidas, cuja pintura aqui escusa pintarem-se per palavras própias e naturaes.

Fólio 4r: Prólogo.
Fólio 4r: Prólogo.

E como as armas sejam sinaes de virtudes, são obrigados os nobres usar do que os liões, serpes, aves e outras feras ou mansas e os metaes e cores delas seneficam, da qual arte, por el-Rei, que Deus tem, ter gosto de se servir de mim, procurei saber o que pude e neste livro fiz o que bastava, posto que nom fezesse o que se podera fazer se as outras em que de contino servia me deram lugar.

Comentário:

Claramente, Antônio Godinho era um homem do Renascimento. Não só pelas citações de autores clássicos, mas porque, além de tudo o que comentei na postagem anterior, quando foquei a atualização do armorial gentilício à luz do regimento manuelino, se preocupou com duas questões muito interessantes: situar a obra na história e delimitar a heráldica como uma arte por si.

No primeiro ato, cabe mais um elogio ao nosso autor, pois em vez de ecoar as origens míticas da armaria, que dei a conhecer aqui ao editar o Tratado Prinsault, atém-se aos fatos recentes: sim, durante todo o século XV príncipes e senhores serviram-se dos arautos enquanto especialistas em honra cavalheiresca, o que incluía a heráldica e a genealogia. Em Portugal, sabe-se que os arautos atuaram ao menos desde o começo da segunda dinastia (1385).

No entanto, Antônio Godinho comete uma imprecisão: ele atribui inteiramente a Dom Manuel I o controle da armaria gentilícia pela Coroa, quando por este blog mesmo já sabemos que às iniciativas desse rei antecedeu a carta de Dom Afonso V em 1476, pela qual fez do rei de armas Portugal o oficial de armas principal. Trocando em miúdos, foi desde então que as mercês régias em matéria heráldica foram concedidas por intermédio de um único oficial, a quem cabia registrá-las em tombo próprio, também as armas das linhagens nobres.

Mesmo assim, é preciso reconhecer que essa exaltação do Venturoso consiste num movimento retórico inteligente: firmou-se um antes e um depois, e no depois projetou-se um passado ideal. Explico: segundo Antônio Godinho, a ação do rei garantiu que o brasão "permanecesse" uma marca de nobreza e honra, um construto ideológico tão bem feito que ainda ressoava na legislação do século XIX.

No segundo ato, gravou-se um testemunho de uma tensão na evolução estilística da heráldica. Como eu disse na postagem inicial da divulgação do Livro do Armeiro-Mor, por mais que se admire hoje a sua beleza, o seu estilo é gótico. Não causava estranheza alguma porque no início do século XVI esse estilo ainda predominava na arte da iluminura e não destoava gritantemente do heráldico clássico, muito mais românico. Mas à altura da escrita do prólogo (após 1521, pois que endereçado a Dom João III), o realismo extremo do gosto renascentista chocava com a estilização das figuras na armaria, desenhadas em duas dimensões, sem gradação nem sombra, preenchendo os quadros.

Provavelmente Antônio Godinho não teve essa consciência, mas ao se antecipar a eventuais acusações de imperícia, operou um corte epistemológico, pois, no fundo, defendeu que a heráldica é uma arte independente e, como tal, não precisa seguir a moda. Lamentavelmente, esse entendimento só se desenvolveu no século passado, quando o estudo da heráldica foi renovado por perspectivas acadêmicas, já que durante a Idade Moderna foi gorado por duas infelicidades: a decadência da iluminura entre os oficiais de armas e a infiltração progressiva do naturalismo na reprodução do brasão.

A decadência da iluminura está patente nos dois grandes armoriais que sucederam o Livro da nobreza e perfeição das armas: o Tesouro de nobreza (1675), de Francisco Coelho, rei de armas Índia, e o Tesouro da nobreza de Portugal (1783), de Frei Manuel de Santo Antônio e Silva, reformador do Cartório da Nobreza. Observem-se, por exemplo, o fólio 26 daquele, que dá as armas dos condes da Castanheira, de Vila Verde, de Coculim, de Pombeiro, da Vidigueira, de Vila Nova de Cerveira, de Oriola, dos Arcos, da Ribeira Grande, de Santiago e de São Vicente, ou o 5 deste, que dá as armas dos marqueses de Marialva, das Minas, de Nisa e de Penalva: os traços são grosseiros; as proporções, descuidadas; os animais, infantis.

Por outro lado, fora desse meio, o artista que recebia a encomenda de estampar certo brasão num livro, pintá-lo num teto ou esculpi-lo numa fachada, procurava executá-la conforme o seu estilo pessoal e o da escola à qual se filiava. Por exemplo, a escultura das armas municipais que se vê no frontispício dos Paços do Concelho de Lisboa (1882) é muito bonita, mas reproduz mais uma paisagem de uma nau com dois corvos sobre o mar do que um emblema brasonável.

Tudo isto faz do Livro da nobreza e perfeição das armas uma obra à qual se deveria dar mais atenção de diversas perspectivas: heráldica, histórica, artística.

Nota:
(1) Na verdade, Ne supra crepidam sutor judicaret. Significa 'Que o sapateiro não julgasse além do calçado'. Trata-se de uma anedota contada por Plínio o Velho na Naturalis historia (35, 36): o pintor grego Apeles costumava expor as suas obras à crítica dos transeuntes; enquanto isso, escondia-se para ouvi-los, dentre eles um sapateiro, que apontou defeitos na pintura de uma sandália. Corrigida, o sapateiro avançou no juízo do resto; Apeles apareceu, então, e disse-lhe que não julgasse além do calçado, ou seja, que não ultrapassasse o seu domínio.

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