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28/07/21

AS DIFERENÇAS DA CASA REAL

Ainda que talvez tenha sido um sistema mais teórico que prático, a heráldica portuguesa cuidava em diferençar as armas de cada membro da Casa Real.

Uma inocente busca das nossas primeiras armas nacionais na Internet pode levar o incauto curioso a resultados francamente fantasiosos, difundidos por monarquistas. Não sei se foram assumidos pelos pretendentes hodiernos à deposta coroa ou se lhes são atribuídos pelos seus entusiastas. Tampouco me interessa sabê-lo. O que me interessa é a matéria heráldica, daí o que pus na postagem anterior: se querem distribuir brasões aos Orleans e Braganças viventes segundo a antiga linha sucessória, deveriam ao menos fundamentar-se nas regras às quais a armaria gentilícia nacional obedecia: o direito heráldico português.

Com efeito, se tal regulação era tão escrupulosa em assinar a cada um o que lhe cabia em matéria heráldica, não poderia sê-lo menos em estabelecer as diferenças das armas reais que a geração do rei devia trazer. O sistema consta do chamado Regimento e ordenação da armaria, que fazia parte do corpus normativo com que o Cartório da Nobreza operava e vinha geralmente mencionado nas cartas de brasão. Dou-o a seguir a partir da cópia contida no Manual de heráldica portuguesa (1941), de Armando de Matos:

1.º item: Que só o possuidor da coroa real, que é o rei, trará as armas dos estados que o Reino possuir e trouxer direitas, sem nenhuma diferença.
2.º item: A rainha trará também as tais armas do Reino e as do estado donde ela descender direitas e em escudo partido em pala, e na primeira as do marido e na segunda as que lhe pertencerem por parte de seu pai e da maneira que as ele, seu pai, trouxer. E outra nenhuma mulher as pode trazer em escudo se rainha não for.
3.º item: Que o príncipe herdeiro do Reino as trará em vida de seu pai, enquanto não for rei, com um labéu por cima delas, posto em chefe, de três pontas virgens.
4.º item: O filho do príncipe as poderá trazer em vida de seu pai e avô com o mesmo labéu de três pontas, como o pai, mas trará sobre cada uma ponta um botão de rosa cerrado de sua cor.
5.º item: Que o segundo filho do rei e primeiro infante as trará com o mesmo labéu, como o do príncipe, seu irmão, mas trará a primeira ponta da mão esquerda com armas singelas da parte da mãe.
6.º item: Que o terceiro filho e segundo infante as trará pela maneira do infante, seu irmão, e ocupada mais a segunda ponta com mais armas singelas da parte da mãe.
7.º item: Que o quarto filho e terceiro infante as trará pela maneira do terceiro irmão, ocupada mais a terceira ponta com mais armas singelas da parte da mãe.
8.º item: Que havendo outros mais filhos, virão por suas precedências de mais velho a mais moço, ocupando as pontas do labéu com armas dobradas da parte da mãe ou outras diferenças nobres. E sempre começarão da primeira ponta da mão esquerda para a da mão direita, como dito é, em cada uma sua. E sendo filhos de muitas mães que tenham diferentes armas, cada um trará as pontas que ocupadas deve trazer com as armas de sua mãe, que a ela lhe pertencem.
9.º item: Que a princesa trará as suas armas em lisonja, a qual será partida em pala, e trará sempre a primeira parte da mão direita ocupada para as armas do marido casando, e a outra com as armas d'el-Rei, seu pai, e todas sem nenhuma diferença, por ser mulher. E as deve de trazer desta maneira.
10.º item: Que as infantas as trarão pela mesma maneira, em lisonja e partida em pala, e sempre a primeira parte da mão direita limpa para as armas do marido, quando lhe vier, e a outra com as armas d'el-Rei, seu pai, e todas sem nenhuma diferença, senão com a que os maridos tiverem, e desta maneira, por serem mulheres. E as devem assim de trazer.
11.º item: Que casando algum infante, vindo a haver filhos legítimos, estes tais trarão as próprias armas dos pais, mas com mais diferenças de filhos legítimos cada um e de mais velhos a mais moços, para por elas serem conhecidos. E os netos as trarão com mais diferenças e os bisnetos, com mais, de maneira que nesta quarta geração as deixarão de trazer e nela fenecerão as tais armas reais. E trarão dali por diante as armas da parte de suas mães e das casas donde elas descenderem, de maneira que no grau onde se apuram as populares gerações das diferenças se perdem as armas e gerações dos reis com elas.
12.º item: Que sendo caso que venham a falecer a um rei todos os filhos infantes e que lhe não fique mais que um só, este tal, ainda que seja o mais moço, saltará as suas armas e trará as do primeiro infante, por então ficar em seu lugar e não haver outro que lhe preceda.
13.º item: Que vindo a reinar o príncipe em vida deste tal infante, o dito infante, seu irmão, irá saltando as ditas armas do primeiro infante e afastando-se das diferenças que a seus sobrinhos infantes pertencerem, como fica dito, por ficarem mais chegados à coroa que ele.
14.º item: Que se o rei, príncipe ou infante vier a haver algum filho natural, que se entende de solteiro e solteira, trará por cima das armas de seu pai, que lhe pertencerem trazer, posta em banda uma cotica de cor ou metal ou composta ou fimbrada ou de veiros ou de arminhos ou gotada ou endentada ou ameada. E sendo caso que venham a haver alguns destes filhos naturais filhos, fenecerão as ditas armas suas deles em seus netos, filhos de seus filhos, com as outras mais diferenças que lhe a armaria dá, conforme a seus nascimentos, por não poderem passar estas armas reais da quarta geração por si só, ainda que vão com diferenças. E seus descendentes destes, bisnetos do rei ou príncipe ou infante, trarão daí em diante as armas da parte de suas mães e da geração que elas descenderem.
15.º item: Que se outrossim o rei ou príncipe ou infante vier a haver filho bastardo, que se entende de casado e solteira ou de solteiro e casada, além de trazer as armas de seu pai, que lhe pertencerem de trazer, trará um filete preto de bastardia em contrabanda. E vindo a haver algum destes filhos bastardos filhos alguns, fenecerão as suas armas em os filhos destes, seus filhos, com as mais diferenças que lhe a armaria dá, conforme a seus merecimentos, por serem bisnetos, que é a quarta geração do rei ou príncipe ou infante por onde lhe vieram, e não trarão daí por diante seus descendentes mais as tais armas reais, senão as das casas que por parte de suas mães lhe pertencerem.
16.º item: Que os filhos de coito danado, que são os adulterinos ou incestuosos ou sacrílegos, trarão o tal filete de diferença endentado e posto em contrabanda, como o outro, para que por ele sejam uns dos outros conhecidos: o adulterino, azul; o incestuoso, verde; e o sacrílego, sanguinho.
17.º item: Que tudo o sobredito se observará inviolavelmente para que com as sobreditas diferenças haja conhecimento de uns a outras pessoas e se distingam os reis dos príncipes, infantes e das infantas e dos mais descendentes de cada um dos sobreditos, para respeito popular.

Observe, prezado leitor, os itens 12.º e 13.º patenteiam que essas diferenças não pertenciam à pessoa, mas à dignidade. Isso dificulta achar testemunhos históricos, pois um dinasta podia passar por várias dignidades ao longo da vida à medida que o seu lugar na linha de sucessão se movia, em virtude da abdicação ou do falecimento de quem tinha a coroa ou estava mais perto de tê-la, ou mesmo do nascimento de um varão, que preteria, então, os direitos de uma mulher mais velha. Afortunadamente, o próprio criador desse sistema, Dom Manuel I, teve uma vasta prole, cujos brasões estão reproduzidos em dois dos armoriais que mandou fazer: a Sala dos Brasões no Paço de Sintra (1515-1520) e o Livro da nobreza e perfeição das armas (1521-1541). Vejamo-los neste, já que naquele as armas dos infantes estão iguais:

Fólio 7v: Rei de Portugal; Rainha Dona Maria; Do Príncipe; Infante Dom Luís.
Fólio 7v: Rei de Portugal; Rainha Dona Maria; Do Príncipe; Ifante Dom Loís.

Rei de Portugal: De prata com cinco escudetes de azul postos em cruz, carregados de cinco besantes do campo, e uma bordadura de vermelho, castelada de ouro. São as armas de Dom Manuel I (1495-1521).

Rainha Dona Maria: Partido, no primeiro, as armas do Reino; o segundo esquartelado, o primeiro e quarto contraesquartelados, o primeiro e quarto de vermelho com um castelo de ouro; o segundo e terceiro de prata com um leão de púrpura, armado e lampassado de vermelho; o segundo e terceiro partidos, o primeiro de ouro com quatro palas de vermelho; o segundo franchado, o primeiro e quarto de ouro com quatro palas de vermelho, o segundo e terceiro de prata com uma águia abatida de negro; embutido em ponta de vermelho com uma romã de ouro, sustida do mesmo e folhada de verde. São as armas de Dona Maria de Aragão (1482-1517), a segunda esposa de Dom Manuel I. A primeira foi uma irmã desta: Dona Isabel de Aragão, falecida em 1498. Ambas eram filhas de Isabel de Castela e Fernando de Aragão, os Reis Católicos. As armas do segundo partido são exatamente as que estes convieram em 1475 para marcar a sua união: o primeiro e quarto quartéis traziam as armas reais de Castela e Leão, o segundo e terceiro, as de Aragão e Aragão-Sicília e o embutido em ponta (entado en punta em espanhol, entat en punta em catalão), as do reino de Granada, o derradeiro estado muçulmano da península, que ufanamente conquistaram em 1492.

Do Príncipe: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes. São as armas do príncipe Dom João (1502-57), o filho mais velho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão. Sucedeu a seu pai em 1521 com o nome de Dom João III e reinou até a sua morte.

Infante Dom Luís (1506-55): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com um escudete quadrado, esquartelado de Castela e Leão, brocante sobre o primeiro pendente. Quarto filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, primeiro infante e duque de Beja.

Fólio 8r: Infante Dom Fernando; Infante Dom Afonso; Infante Dom Henrique; Infante Dom Duarte.
Fólio 8r: Ifante Dom Fernando; Ifante Dom Afonso; Ifante Dom Hanrique; Ifante Dom Duarte.

Infante Dom Fernando (1507-34): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com dois escudetes quadrados, um esquartelado de Castela e Leão, brocante sobre o primeiro pendente, e o outro com as armas de Aragão, brocante sobre o terceiro. Quinto filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, segundo infante e duque da Guarda.

Infante Dom Afonso (1509-40): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro esquartelado de Castela e Leão, o segundo com as armas da Inglaterra e o terceiro com as de Aragão. Sexto filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, terceiro infante, bispo da Guarda (1516-19), bispo de Viseu (1519-23), bispo de Évora e arcebispo de Lisboa (1523) e cardeal da Santa Igreja Romana (1525).

Infante Dom Henrique (1512-80): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro com as armas da Inglaterra, o segundo com as de Aragão e o terceiro partido de Jerusalém e da Hungria. Oitavo filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, quarto infante, arcebispo de Braga (1533-40), arcebispo de Évora (1540-64, 1574-78), arcebispo de Lisboa (1564-70), cardeal da Santa Igreja Romana (1547) e rei de Portugal (1578), o derradeiro da Casa de Avis.

Infante Dom Duarte (1515-40): As armas do Reino, diferençadas por um lambel de prata de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro com as armas de Aragão, o segundo partido de Jerusalém e da Hungria e o terceiro com as armas de Aragão-Sicília. Nono filho de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, quinto infante e duque de Guimarães.

Fólio 8v: Infante Dona Isabel; Infante Dona Beatriz; Infante Dom Antônio; Duque de Coimbra.
Fólio 8v: Ifante Dona Isabel; Ifante Dona Briatiz; Ifante Dom Antônio; Duque de Coimbra.

Infanta Dona Isabel (1503-39): Lisonja partida, o primeiro de prata lisa; no segundo, as armas do Reino. Segunda filha de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão, rainha e imperatriz pelo casamento com Carlos I da Espanha e V do Sacro Império em 1526.

Infanta Dona Beatriz (1504-38): Lisonja partida, o primeiro de prata lisa; no segundo, as armas do Reino. Terceira filha de Dom Manuel I e Dona Maria de Aragão e duquesa pelo casamento com Carlos III de Saboia em 1521.

Infante Dom Antônio: As armas do Reino, diferençadas por um lambel de três pendentes com três escudetes quadrados, brocantes sobre os pendentes, o primeiro partido de Jerusalém e da Hungria, o segundo com as armas de Aragão-Sicília e o terceiro de prata liso. Décimo filho de Dom Manuel I e Dona Catarina de Aragão, faleceu em tenra idade, de tal modo que se pode datar a iluminura destas três páginas entre 9 de setembro de 1516, quando esse infante nasceu, e 7 de março de 1517, quando a rainha morreu. De fato, nem as armas de Dona Maria nem as de Dom Antônio figuram na cúpula da Sala de Sintra, o que situa a sua feitura em 1517 e 1518.

Duque de Coimbra: As armas do Reino, diferençadas por um filete de negro em barra, brocante sobre tudo. São as armas de Jorge de Lancastre (1481-1550), filho bastardo de Dom João II.

A correspondência destes casos com o regimento é bastante regular, a não ser pela ordem dos escudetes: o emprego das locuções da mão direita e da mão esquerda tornam o texto um tanto confuso, ao passo que o armorial sobrepõe os escudetes aos pendentes da destra à sinistra, saltando o do meio no caso do segundo infante, talvez para o conjunto ficar mais simétrico. Na verdade, é razoável supor que foi a própria prole de Dom Manuel I que inspirou a regulação dessas diferenças. Basta observar as armas de Dona Maria de Aragão para ver como os infantes foram tomando as armas dos Reis Católicos, seus avós maternos, segundo as suas precedências:

  • o primeiro, as armas de Castela e Leão;
  • o segundo, estas e as de Aragão;
  • o terceiro, as dessas duas Coroas e as da Inglaterra, porque foi preciso subir até Catarina de Lancastre, avó paterna de Isabel a Católica, para achar mais armas reais diferentes;
  • o quarto, estas, as de Aragão e as de Jerusalém e Hungria, que foram trazidas pelo ramo cadete da Casa de Trastâmara que governara o reino peninsular da Sicília (veja-se Rei de Aragão no Livro do Armeiro-Mor);
  • o quinto, as de Aragão, as de Jerusalém e Hungria e as de Aragão-Sicília, que foram trazidas pelo ramo cadete da Casa de Barcelona que governara o reino insular da Sicília. Fernando o Católico reunificara as Duas Sicílias e reunira-as à Coroa de Aragão em 1504.

Além disso, o regimento sugere que o número de escudetes segue o dos infantes ("ocupando as pontas do labéu com armas dobradas da parte da mãe ou outras diferenças nobres"), mas no Livro da nobreza e perfeição das armas não ultrapassa o dos pendentes, compensando-se essa limitação com a diversificação das armas da linhagem materna.

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