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20/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: SALVADOR

Os raros brasões de que se tem notícia durante o domínio português na América merecem um estudo criterioso das fontes textuais.

Ao fim do século XVI, Santo Domingo (1508), Porto Rico (1511), Cuba (1517), a Cidade do Panamá (1521), a Cidade do México (1523), a Cidade da Guatemala (1532), Lima (1537), Quito (1541), Bogotá (1548), Santiago do Chile (1552), Buenos Aires (1590), Caracas (1591) e várias outras povoações das Índias de Castela já tinham brasões, todos concedidos pelos seus monarcas, como Carlos López-Fanjul de Argüelles compilou em artigo de 2016. Nada mais diferente da América portuguesa, mesmo durante a União Ibérica (1580-1640).

Com efeito, durante todo o domínio português na América, somente um brasão teve um uso bem documentado: o de Salvador. Dois, os de São Luís e Belém, estão descritos numa crônica. Outros dois, os de Cuiabá e Vila Bela da Santíssima Trindade, foram, excepcionalmente, ordenados nos autos das suas fundações. Um sexto, o do Rio de Janeiro, tem sido aceito pela literatura heráldica nacional com insuficiente crítica, a meu ver. Nesta postagem, abordo o primeiro.

Salvador passou pelos três momentos iniciais da colonização. Durante o primeiro, a exploração da costa, Diogo Álvares naufragou diante da barra do rio Vermelho entre 1509 e 1511 e, com o nome de Caramuru, viveu entre os tupinambás, casou com Paraguaçu, filha de um principal, batizada Catarina do Brasil, e morou no sítio onde fica hoje o bairro da Graça, cuja igreja é sucessora do oratório primitivo que fez aí. Durante o segundo, a doação das capitanias hereditárias, Francisco Pereira Coutinho recebeu o lote entre a foz do São Francisco e a baía de Todos os Santos em 1534, tomou posse dele no ano seguinte e levantou um arraial perto do Porto da Barra. Contudo, voltando de Porto Seguro em 1547, naufragou junto à ponta meridional da ilha de Itaparica, onde foi capturado, morto e devorado pelos índios. Finalmente, Tomé de Sousa desembarcou aos 29 de março de 1549 no mesmo Porto da Barra com a missão de fundar uma "povoação grande e forte" e implantar uma administração nova: a cidade do Salvador, cabeça do estado do Brasil, do qual foi o primeiro governador-geral. A Coroa indenizou em 1576 o herdeiro de Francisco Pereira Coutinho pela ocupação da capitania.

Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (pousada) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.
Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (pousada) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.

O brasão de Salvador é o mais bem documentado do período colonial porque já é citado por Gabriel Soares de Sousa, que era vereador da cidade em 1582 e em 1587, quando se achava em Madrid, datou a dedicatória da sua crônica, editada em 1879 pelo historiador Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, sob o título de Tratado descritivo do Brasil em 1587. No capítulo quinto, narra o seguinte:

Como Tomé de Sousa acabou o seu tempo de governador, que gastou tão bem gastado neste novo estado do Brasil, requereu a Sua Alteza que o mandasse tornar para o Reino, a cuja petição el-Rei satisfez com mandar por governador a Dom Duarte da Costa, do seu Conselho, ao qual deu a armada conveniente a tal pessoa, em que passou a este estado, com a qual chegou a salvamento à baía de Todos os Santos. Desembarcou na cidade do Salvador, nome que lhe Sua Alteza mandou pôr, e lhe deu por armas uma pomba branca em campo verde, com um rolo à roda branco, com letras de ouro que dizem Sic illa ad arcam reversa est, e a pomba tem três folhas de oliva no bico; onde lhe foi dada posse da governança por Tomé de Sousa, que se logo embarcou na dita armada e se veio para o Reino, onde serviu a el-Rei Dom João e a seu neto, el-Rei Dom Sebastião, de veador. E no mesmo cargo serviu depois à rainha Dona Catarina enquanto viveu. (grifo meu)

Sebastião da Rocha Pita, na sua História da América portuguesa (1730), não só confirma esse ordenamento, mas também acrescenta algumas informações muito relevantes:

30. ARMAS DA CIDADE DA BAHIA. Deu el-Rei Dom João III à cidade da Bahia por armas em campo verde uma pomba branca, com um ramo de oliveira no bico, circulada de uma orla de prata, com estas letras de ouro: Sic illa ad arcam reversa est. Estas armas se veem em ambas as portas da cidade, nas casas da câmara, no seu pendão e nas varas dos seus cidadãos. A pomba é símbolo do amor; a oliveira, sinal de serenidade, atributos que resplendeceram naquele príncipe e prerrogativas em que se esmeram estes vassalos para com os seus monarcas, pois nem as invasões dos inimigos nem outras calamidades do tempo puderam diminuir a constância da sua fidelidade nas execuções da sua obediência. E por estas virtudes mereceram os prezados títulos que logra esta cidade, de muito nobre e sempre leal, e o seu senado, os privilégios todos que tem o da cidade do Porto. Perdoe-se ao autor dilatar-se tanto na pintura da Bahia, por ser pátria sua, e não se ofenda o original de ficar tão pouco fermoso no retrato. (grifo meu)

Além de grande acadêmico do Brasil colonial, Rocha Pita também foi vereador de Salvador, de modo que a informação sobre o uso dessas armas se reveste da maior autoridade. Infelizmente, não se conservou nenhum dos suportes mencionados: as portas foram demolidas no fim do século XVIII; a câmara ainda se reúne no mesmo local (fato raríssimo no Brasil), mas o paço sofreu várias alterações ao longo do tempo; o tecido é o mais frágil de todos. Mesmo assim, é possível que no memorial da câmara se ache algum objeto armoriado do período colonial. Por enquanto, é preciso, trabalhar com essas duas descrições, que falham apenas em não exprimir a disposição da pomba.

Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (voando) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.
Brasão colonial de Salvador: de verde com uma pomba (voando) de prata, segurando um ramo de oliveira de sua cor com o bico; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de ouro em listel de prata.

Em geral, a posição ordinária de uma ave na armaria é pousada, ou seja, de perfil, com as asas fechadas, como a mesma pomba nas armas dos papas Inocêncio X e Pio XII, porém não é incomum figurar voando, como preferiu José Wasth Rodrigues em Brasões e bandeiras do Brasil (1933), de Clóvis Ribeiro. Atualmente, aparece estendida. Em tempo, a expressão rolo à roda no texto de Gabriel Soares deixa claro que a orla à qual Rocha Pita refere é uma espécie de listel, como discuti na postagem de 30/11. A legenda quer dizer 'Assim ela voltou à arca' e, assim como a própria imagem de uma pomba com um ramo de oliveira no bico, foi tirada do livro do Gênese (8, 8-11).

Brasão de Salvador: de azul com uma pomba estendida de prata, membrada de vermelho, segurando um ramo de oliveira de verde com o bico; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois golfinhos de ouro; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de prata em listel de azul (desenho usado pela câmara municipal).
Brasão de Salvador: de azul com uma pomba estendida de prata, membrada de vermelho, segurando um ramo de oliveira de verde com o bico; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois golfinhos de ouro; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de prata em listel de azul (desenho usado pela câmara municipal).

O ordenamento vigente das armas de Salvador foi estabelecido pela Lei n.º 1.495, de 24 de julho de 1963:

§ 1.º O brasão, nos termos do trabalho elaborado pelo Instituto Genealógico da Bahia e aprovado pelo Primeiro Congresso de História da Bahia, combinado com o depoimento do cronista Gabriel Soares e do historiador Rocha Pita, será o seguinte: escudo português – em campo verde, uma pomba de prata estendida com um ramo de oliva verde no bico, unhada e sacada [sic] de vermelho; coroa – mural de prata com cinco torres; divisa – legenda de prata em uma fita verde; suporte – dois delfins de ouro assentes nas extremidades do listel.

Não obstante, no ano seguinte, outra lei, a de número 1.585, alterou o esmalte do campo para azul. Considerando a citação das fontes, não parece fácil explicar essa alteração, mas o citado visconde de Porto Seguro já o descreve assim na sua História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (1877, p. 242). Talvez a lei de 1963 tenha parecido excessivamente fiel aos testemunhos históricos e a de 64 tenha revertido ao azul, que deve remontar pelo menos ao século XIX. De fato, essa cor contrasta com o ramo de oliveira. 

Note-se, enfim, a dificuldade em empregar a linguagem heráldica: o termo sancada aparece como "sacada" e numa terceira lei, a 7.086/2006, como "saneada". Sancado é o mesmo que membrado, isto é, exprime que os tarsos e dedos da ave têm esmalte diferente do corpo, mas, na verdade, quando se diz sancado ou membrado não é preciso acrescentar unhado ou armado, já que raramente as unhas ou garras têm esmalte diferente dos tarsos e dedos, por ficarem diminutas na reprodução do brasão. Pessoalmente, brasono as armas de Salvador assim: de azul com uma pomba estendida de prata, membrada de vermelho, segurando um ramo de oliveira de verde com o bico; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois golfinhos de ouro; divisa: Sic illa ad arcam reversa est, escrita de prata em listel de azul.

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