Séries de postagens

22/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL COLONIAL: RIO DE JANEIRO (I)

Se a heráldica é uma ciência, então a sua abordagem histórica precisa partir de testemunhos documentais.

No que respeita à documentação, o brasão colonial do Rio de Janeiro é o contrário daquele de Salvador. Com efeito, seria ideal abordar os dois casos conjuntamente; faço-o em duas postagens por adequação ao blog. Assim, na anterior pus que o testemunho do historiador Rocha Pita sobre o uso das armas soteropolitanas goza de grande autoridade porque ele foi vereador da cidade. Menor crédito merece, todavia, o que diz sobre a origem e o significado dessas armas.

Segundo Rocha Pita, foi o próprio rei quem concedeu armas à cidade da Bahia (assim a chama porque, efetivamente, as demais povoações da capitania eram vilas) e as figuras simbolizam atributos pessoais de Dom João III: amor e serenidade. Se isso não for mito  diga-se, a propósito, bem ao gosto da época , soa muito como um. Ora, o cronista Gabriel Soares narra que quem deu o brasão foi Duarte da Costa ao assumir o governo-geral em 1553. Mesmo admitindo que, no fim das contas, todo oficial da Coroa agia como se intuísse a vontade régia, daí precisamente a expressão "enquanto Sua Majestade não mandar o contrário", o funcionamento mesmo da heráldica municipal portuguesa no Antigo Regime lança dúvidas sobre essas narrativas.

Mais uma vez, terei de remeter o paciente leitor à postagem anterior. Note-se aí que não hesitei em atribuir ao soberano a concessão de todos os brasões hispano-americanos que mencionei. É que não há margem para questionamento, já que para tal fim se passavam reales cédulas e estas estão guardadas em arquivos ou transcritas em compilações. No concernente ao controle estatal, as heráldicas castelhana e portuguesa eram exatamente o inverso uma da outra. Ainda que por toda a parte durante a Idade Moderna o brasão se tenha tornado uma marca de nobreza, somente nalguns países o estado pretendeu controlar a heráldica. Assim, enquanto em Castela a escassa legislação se cingiu ao uso das armas reais (1480) e dos coronéis (1586), em Portugal o sistema todo foi regulado pelas próprias Ordenações do Reino e posto sob a regência do Juízo e Cartório da Nobreza. Isto em matéria de armaria gentilícia.

Na heráldica municipal, enquanto os monarcas castelhanos honraram as capitais dos reinos meridionais, acrescentando a famosa bordadura composta de Castela e Leão às suas armas, pelo menos desde a segunda metade do século XIV e concederam armas novas a concelhos tanto na península como no ultramar desde as conquistas de Granada e da América (1492), a Coroa portuguesa entendia que a assunção e o uso de insígnias fazia parte das prerrogativas que a autonomia municipal garantia. Daí que as concessões documentadas mais antigas sejam tão recentes quanto a monarquia constitucional. Como resume Miguel Metelo de Seixas na sua tese de doutorado (2011):

Havia até então existido, é certo, algumas alusões a armas de concelhos concedidas ou acrescentadas por reis de Portugal. Mas não passavam de relatos mais ou menos míticos, desprovidos de suporte documental; e mesmo que tal existisse, seriam sempre casos esporádicos. A verdade é que, até ao século XIX, a Coroa evitara imiscuir-se num assunto que não considerava do seu foro. As insígnias identificativas dos concelhos — de cuja origem se havia, na maior parte dos casos, perdido a memória —, eram assumidas pelas entidades representadas sem necessidade de confirmação ou de sancionamento por parte do rei e dos seus oficiais competentes em matéria de armaria. Nem o poder central promovia qualquer ingerência no domínio da escolha das armas municipais, nem os concelhos procuravam obter a aprovação da Coroa para os sinais que usavam para sua identificação.

Eis a razão por que houve tão poucos brasões no Brasil colonial e mesmo destes as notícias são obscuras, às vezes insuficientes, como é o caso das pretensas armas do Rio de Janeiro. Talvez o estatuto capitalino que essa cidade acabou ganhando tenha levado à atribuição das armas que passo a analisar.

Com efeito, não foi à toa que pelo breve tempo em que o estado do Brasil teve dois governos-gerais (1572-78), um permaneceu em Salvador e o outro foi instalado no Rio de Janeiro: as histórias das suas fundações são muito semelhantes. Em ambos os casos, à Coroa interessava assegurar o domínio de um grande porto natural, onde cabiam as maiores armadas, por isso fundou uma cidade, o que impunha a jurisdição régia, apesar de o território pertencer a um donatário: neste caso, Pero Lopes de Sousa, segundo capitão de São Vicente. Não obstante, no "rio de Janeiro" essa providência urgiu mais que na baía de Todos os Santos, pois à ferocidade da resistência indígena se somava desde 1555 a empresa francesa de estabelecer aí uma colônia: a França Antártica, cuja fortaleza ficava na ilha que tem hoje o nome do seu pioneiro: Nicolas Villegagnon. Embora o governador-geral Mem de Sá a tivesse conquistado menos de cinco anos depois, os franceses fugiram para as matas e remanesceram entre os tamoios. Uma segunda expedição foi, então, despachada e ao 1.º de março de 1565, na praia onde fica hoje a Fortaleza de São João, Estácio de Sá, capitão dessa expedição e sobrinho do governador-geral, fundou a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. A guerra seguiu até 1567 e ao seu fim o próprio fundador pereceu, assim como o santo padroeiro, de uma flechada. A povoação moveu-se, então, para o morro depois dito do Castelo, do qual resta hoje a Ladeira da Misericórdia.

Insígnia colonial do Rio de Janeiro: três flechas enfeixadas e atadas.
Insígnia colonial do Rio de Janeiro: três flechas enfeixadas e atadas.

Ora, São Sebastião tem um atributo icônico bem estabelecido: um molho de setas, que se veem nas armas da cidade de Ponta Delgada e da Vila de São Sebastião, ambas no arquipélago dos Açores. Segundo Adolfo de Varnhagen, visconde de Porto Seguro, na sua História geral do Brasil antes da sua separação e independência de Portugal (1877, p 303), estas foram, precisamente, as "armas" do Rio de Janeiro:

À colônia desde logo o seu povoador deu a categoria de cidade, denominando-a de São Sebastião [...]. Por armas lhe concedeu um molho de setas, alusivas às que haviam servido ao suplício do santo invocado e, quem sabe, se às apreensões que teria dos que, começando por ele, viriam a cair vítimas de frechadas até o final triunfo da civilização nesta terra. (grifo meu)

Que essa referência não especifique nada é um problema verdadeiramente pequeno ante o fato de que é a mais antiga às armas do Rio de Janeiro. Mesmo considerando a primeira edição da obra (1854), é demasiado vaga e tardia para um brasão que se diz remontar à fundação da cidade.

Combinação da insígnia colonial do Rio de Janeiro com a esfera armilar.
Combinação da insígnia colonial do Rio de Janeiro com a esfera armilar.

Para alcançar a segunda referência, saltamos a 1890: trata-se do artigo A bandeira nacional, que Joaquim Norberto de Sousa Silva publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LIII, parte I, 1890, p. 250: "A esfera que o rei Dom Manuel tomou para o seu brasão d'armas foi dada por armas à cidade do Rio de Janeiro, com as três setas de São Sebastião". Além de não suprir as deficiências da primeira referência, aumenta a problemática, pois apõe mais uma figura: a esfera armilar. E para quem supuser que o visconde de Porto Seguro se enganou ao omiti-la, deixo a terceira referência, contida numa publicação também intitulada A bandeira nacional, esta um livro de Eduardo Prado (1906, p. 16): "Há poucos anos, a municipalidade do Rio de Janeiro, achando alguns desses selos, ficou em dúvida sobre se as armas da cidade eram as setas de São Sebastião ou a esfera armilar. Aquelas eram as da cidade; esta, as do Brasil".

Página 193 de Brasões e bandeiras do Brasil (1930), de Clóvis Ribeiro.
Página 193 de Brasões e bandeiras do Brasil (1930), de Clóvis Ribeiro.

Foi desses selos, suspeito eu, que José Wasth Rodrigues desenhou os emblemas que ilustram a página 193 de Brasões e bandeiras do Brasil (1930), cujo autor, Clóvis Ribeiro, os explica assim: "Anteriormente, o Distrito Federal possuiu outros brasões, adotados respectivamente em 1826, 1858, 1889 e 1893, conforme se vê dos desenhos que reproduzimos fielmente de publicações oficiais da prefeitura carioca. Destes, só o de 1858 é aproveitável, mas todos estão compostos com infração das regras de heráldica". À exceção daqueles de 1889 e 1896, os demais trazem a esfera armilar rematada do molho de setas. Quanto ao de 1889, talvez nem seja do município, mas uma interpretação das armas nacionais recém-assumidas pela República (como argui na postagem de 22/02). O de 1896 é, de fato, o primeiro que foi adotado oficialmente, mediante o Decreto n.º 312, de 1.º de agosto, mas em vez de se assentarem sobre um escudo as figuras — agora a esfera atravessada pelas setas enfeixadas e um barrete frígio sobreposto —, assentaram-se sobre uma vela de navio.

Todos estes dados levam-me a duvidar muito de que o Rio de Janeiro tenha possuído um brasão durante o período colonial e mesmo o imperial. E se isto parecer herético ao improvável leitor, será porque José Wasth Rodrigues desenhou um escudo de vermelho com uma esfera armilar de ouro, atravessada por três flechas enfeixadas do mesmo, para o citado Brasões e bandeiras do Brasil e, desde então, se veio reproduzindo esse desenho sem nenhuma crítica. Contudo, está claríssima a insuficiência documental.

Estandartes da câmara do Rio de Janeiro, segundo Clóvis Ribeiro (Brasões e bandeiras do Brasil, 1933).
Estandartes da câmara do Rio de Janeiro, segundo Clóvis Ribeiro (Brasões e bandeiras do Brasil, 1933).

Na minha opinião, o visconde de Porto Seguro andou muito perto dos fatos, pois se interpretarmos que o molho de setas eram não as armas, mas a insígnia do Rio de Janeiro, resolveremos vários problemas. Com efeito, na mundivisão portuguesa do Antigo Regime fazia muito sentido que um concelho se identificasse pelo atributo icônico do seu orago. A câmara de Olinda, por exemplo, usava o mundo alusivo ao Santíssimo Salvador (leia-se a postagem de 23/04). Na verdade, o estandarte da câmara carioca trouxe o próprio ícone de São Sebastião ao menos desde 1808, salvo durante o primeiro império, quando usou da bandeira nacional, até 1889, tudo segundo o mesmo Clóvis Ribeiro na sua obra citada. Confirmam esta hipótese duas reproduções do molho de setas a modo de divisa: no medalhão que orna o frontispício da Santa Casa da Misericórdia, de 1868, em que figura entre o escudo dessa instituição e o nacional, e no teto do Salão Nobre do Colégio Pedro II, de 1875, em que timbra o escudo nacional.

Gostaria de acabar esta postagem mostrando as armas hodiernas do Rio e dizendo algo sobre ele, mas, mutatis mutandis, a falta de registros verbais e visuais é comparável à que compromete o pretenso brasão colonial, de modo que terei de continuar na próxima postagem.

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