À medida que se complexificava, foi tornando-se necessário codificar mais a heráldica, a tal ponto que os tratados de armaria ficaram insuficientes.
Do Tratado Prinsault (1444):
Le douziesme
chapitre et dernier démonstre la manière de blasonner quinze escus difficiles,
ci-après contenus, avecques la conclusion de ce présent livret.
Par la doctrine escrite
et déclarée en ce présent livret, pourra chascun estre prompt et expert à
blasonner les armes de tous empereurs, rois, ducs, comtes, barons, chevaliers, escuyers,
cités et autres pays ou communités ayants armes, aussitost qu'il les verra
peintes ou figurées en aucun lieu. Et pour ce qu'aucunes fois on trouve plusieurs
blasons estranges et différents, ai voulu descrire quinze escus ou blasons, les
plus difficiles que j'ai peü trouver ne penser, pour et afin d'avoir plus grand
connoissance quand viendra en lieu convenable et sera temps de respondre, se
aucun en vouloit demander, lesquels quinze escus pouez veoir appertement
ci-après figurés.
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De pourpre diapré d'aiglettes et lions d'or. |
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Emanché d'or et d'azur. |
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De sable à un escarboucle percé, floronné, pommeté d'or. |
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D'argent à deux bandes de gueules, engreslées de sable. |
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Palé contrepalé d'argent et de sinople. |
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D'argent à deux gémelles de sable, à un pal de gueules. |
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De gueules à un pal de sinople, deux ales d'or. |
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De gueules à un fer de molin d'or. |
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D'or à une bande crènelée de gueules et de sable. |
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Une pointe de gueules, l'autre d'or. |
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D'argent à un gonfanon de gueules. |
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De gueules à une croix d'or, bordé componé d'argent et d'azur. |
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D'or à un escu d'azur et un filet de gueules. |
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D'or à un chef de sable, un lion de gueules issant. |
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D'or et d'azur au pied parti, au chef palé, faissé contrefaissé, à deux cantons gironnés et un escu d'argent parmi. Sont les armes de Pressigny. |
O décimo segundo capítulo e
derradeiro demonstra o modo de brasonar quinze escudos difíceis, dispostos a
seguir, com a conclusão do presente livrinho.
Pela doutrina escrita e esclarecida no presente livrinho,
poderá cada um estar pronto e ser experto em brasonar as armas de todos os
imperadores, reis, duques, condes, barões, cavaleiros, escudeiros, cidades e
outras regiões ou comunidades que têm armas, assim que as vir pintadas ou
figuradas nalgum lugar. E como algumas vezes se acham vários escudos estranhos
e diferentes, quis descrever quinze escudos ou brasões, os mais difíceis que
pude achar ou pensar, para e a fim de ter maior conhecimento quando vier a
lugar conveniente e for tempo de responder, se alguém quiser perguntar, quinze
escudos estes que você pode ver nitidamente figurados a seguir.
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De púrpura matizado com aguietas e leões de ouro. |
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Emalhetado de ouro e azul. |
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De negro com um carbúnculo furado, florenciado, maçanetado de ouro. |
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De prata com duas bandas de vermelho, espiguilhadas de negro. |
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Palado contrapalado de prata e verde. |
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De prata com duas gêmeas de negro e uma pala de vermelho. |
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De vermelho com uma pala de verde e duas asas de ouro. |
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De vermelho com um ferro de moinho de ouro. |
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De ouro com uma banda ameada de vermelho e negro. |
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Uma ponta de vermelho, a outra de ouro. |
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De prata com um gonfalão de vermelho. |
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De vermelho com uma cruz de ouro e uma bordadura composta de prata e azul. |
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De ouro com um escudo de azul e um perfil de vermelho. |
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De ouro com um chefe de negro e um leão de vermelho sainte. |
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De ouro e azul com um pé partido, um chefe palado, faixado contrafaixado, dois cantões gironados e um escudo de prata no meio. São as armas de Pressigny. |
Comentário:
O último capítulo do Tratado Prinsault demonstra por que o seu gênero discursivo foi cindindo-se em dois desde o fim do século em que foi escrito: de um lado, permaneceu conciso e superficial, amiúde integrante de volumes mais amplos, ou como introdução a um armorial ou como capítulo de uma obra enciclopédica; de outro, a necessidade de tratar a matéria com mais precisão e profundidade levou à elaboração de manuais mais extensos. É que a complexidade crescente dos brasões demandou um tratamento mais acurado do que simplesmente dar um desenho e o brasonamento. Neste comentário, vou analisar exemplo por exemplo.
1.
De púrpura matizado com aguietas
e leões de ouro: Hoje se diria de púrpura com duas aguietas de ouro e dois leões do mesmo, cantonados e alternados (1). O matizado não é um constituinte das armas, mas um ornamento: trata-se de arabescos que ornam o campo e/ou a peça ou figura. Esse estilo foi adotado na feitura do Livro do Armeiro-Mor (1509) e do Livro da nobreza e perfeição das armas (1512-41), mas no geral é pouco frequente na heráldica lusófona. Mais interessante é a situação cantonada e alternada das figuras: incomum, mas bela.
2.
Emalhetado de ouro e azul: Como expus no comentário ao capítulo anterior, o emalhetado é uma qualificador de forma de linha.
3.
De
negro com um carbúnculo furado e florenciado de prata, maçanetado de ouro: Segundo o Dicionário infopédia da Língua Portuguesa, um carbúnculo é "qualquer gema vermelha ou granada vermelha lapidada em cabuchão". O vocábulo vem do latim carbunculus, que significa 'carvãozinho', subentendido que ardente. Desde a Antiguidade, atribuem-se-lhe propriedades excelentes ou mesmo maravilhosas. Na heráldica, a figuração no centro do escudo, rodeado de raios, confundiu-se com o brocal, a peça em cruz e aspa que reforçava o escudo, como o prova a própria palavra francesa escarboucle, que resulta do cruzamento do francês antigo escarbuncle com boucle 'brocal'. Daí essa singular figura, também denominada raios de carbúnculo: oito bastões maçanetados, unidos a uma argola, normalmente de extremidades flor-de-lisadas.
4.
De
prata com duas bandas de vermelho, espiguilhadas de negro: Hoje se diria de prata com duas bandas de vermelho, debruadas e espiguilhadas de negro (2). Também tratei do espiguilhado no comentário ao capítulo anterior.
5.
Palado contrapalado
de prata e verde: O artista figurou um cortado, o primeiro de prata com duas palas de verde, o segundo de verde com duas palas de prata. Atualmente, o palado (assim como os demais -ado derivados de peças: faixado, bandado etc.) é uma repartição, o que impõe um número par de peças para fazer a alternância de dois esmaltes. O acréscimo do prefixo contra- assinala que se divide o campo em sentido perpendicular e no segundo se repete a repartição, mas se invertem os esmaltes.
6.
De
prata com duas gêmeas de negro e uma pala de vermelho: Hoje se diria de prata com duas gêmeas de negro e uma pala de vermelho, brocante sobre tudo (3). Das gêmeas tratei no comentário ao capítulo anterior. Brocante diz-se da peça ou figura que se sobrepõe a outra, várias ou as demais.
7.
De vermelho com uma
pala de verde e duas asas de ouro: Hoje se diria de vermelho com uma pala de verde, entre duas asas de ouro, moventes da pala (4). Esse exemplo demonstra por que se tornou necessário o desenvolvimento dos predicativos, de que tratei no comentário ao nono capítulo. Assim, se há uma peça e duas figuras, convém indicar como se relacionam. Além disso, a posição ordinária de uma asa é aberta e apontada para o alto, de modo que se divergir disso, é preciso brasonar (o artista figurou-as abatidas). Sem indicação, fica-se dependendo do desenho.
8.
De vermelho com um
ferro de moinho de ouro: O artista figurou uma cruz ancorada. O ferro de moinho é uma cruz cujas extremidades acabam em forma de segurelha francesa. A segurelha é a peça do moinho que se liga ao veio, se encaixa na mó andadeira e a faz girar. Daí que os ganchos das extremidades sejam mais curtos que os da cruz ancorada, os quais têm a forma de braços de âncora.
9.
De ouro com uma banda
ameada de vermelho e negro: As ameias são tão frequentes que há um termo para indicar que é o bordo superior que toma a forma delas (ameado), outro para o inferior (bastilhado) e um terceiro para ambos (bretessado). No entanto, que uma partição tome essa forma (encravado) é bastante infrequente. No caso da partição de uma peça, a infrequência é ainda maior, o que torna esse exemplo um caso praticamente hipotético.
10.
Uma ponta de
vermelho, a outra de ouro: Este exemplo é ininteligível, por isto mesmo ilustra mais uma vez o caráter multimodal da heráldica, verbal e visual. Sem uma formulação clara do brasão em linguagem verbal, é preciso recorrer a uma imagem, o que nem sempre resolve a insuficiência. O artista figurou um chapado, que faz parte de um conjunto de partições de duas linhas que formam três ou mais triângulos:
Abraçado: Diz-se do campo que está partido por duas linhas, uma do ângulo destro do chefe ao meio do flanco sinistro e a outra daí ao ângulo destro da ponta, de modo que do campo se vê um triângulo ao meio, o qual tem mais um a cada lado, em cima e embaixo, estes do mesmo esmalte, diferente do campo. Se as linhas convergem no meio do flanco destro, diz-se abraçado à sinistra. Fr. embrassé.
Calçado: Diz-se do campo que está partido por duas linhas, uma do ângulo destro do chefe ao meio da ponta e a outra daí ao ângulo sinistro do chefe, de modo que do campo se vê um triângulo, o qual tem mais um a cada lado, estes do mesmo esmalte, diferente do campo. Fr. chaussé.
Chapado: Diz-se do campo que está partido por duas linhas, uma do ângulo destro da ponta ao meio do chefe e a outra daí ao ângulo sinistro da ponta, de modo que do campo se vê um triângulo, o qual tem mais um a cada lado, estes do mesmo esmalte, diferente do campo. Fr. chapé.
Endentado: Diz-se da peça que está partida por linhas que tocam ambos os bordos, formando triângulos de esmaltes alternados. Fr. endenté.
Mantelado: Diz-se do campo partido por duas linhas de modo semelhante ao chapado, mas à diferença deste, as linhas não chegam a tocar o meio do chefe, pois convergem um pouco abaixo dele. Fr. mantelé.
A duas dessas partições corresponde senhas peças: ao calçado, a pila; ao chapado, a pira. Noutras palavras, a pila é um triângulo firmado no chefe e a pira, na ponta. A sua largura convencional mede dois terços da largura do escudo. Com une pointe de gueules o autor parece referir a uma pira, mas não se entende por que há outra de ouro. É que a palavra outra supõe uma alternância, o que se faz por partições, daí que o artista tenha figurado um chapado de vermelho e ouro.
11.
De prata com um
gonfalão de vermelho: Apesar da forma estranha, um gonfalão é um estandarte de pontas pendentes, suspenso por uma travessa, afixada a uma haste.
12.
De
vermelho com uma cruz de ouro e uma bordadura composta de prata e azul: Atualmente em francês bordé significa 'debruado', isto é, uma bordadura diminuta, e assim entendeu o artista ao reproduzir outros exemplos. No entanto, neste figurou de fato uma bordadura, o que é, de resto, o normal quando está composta. Além disso, hoje se costuma brasonar o número de peças da composição.
13.
De ouro com um escudo
de azul e um perfil de vermelho: Atualmente se diria de ouro com um escudete de azul e um debrum de vermelho (5). Mesmo assim, é um brasonamento ambíguo, pois não fica claro se o debrum se aplica ao escudo ou ao escudete. O artista entendeu que ao escudete, mas pela regra de iluminura, talvez faça mais sentido que se aplique ao escudo.
14.
De ouro com um chefe de
negro e um leão de vermelho sainte: Atualmente se diria de ouro com um chefe de negro e um leão de vermelho brocante (6), pois sainte se diz do animal que parece sair de trás de uma partição, peça ou figura, porque se veem apenas a sua cabeça e o corpo até a espádua. Como não se indica de onde o leão estaria sainte, entende-se que está, na verdade, brocante, termo que comentei no número 6.
15.
De ouro e azul com um pé partido, um chefe palado, faixado contrafaixado, dois cantões gironados e um escudo de prata no meio. São as
armas de Pressigny: Tendo uma dificuldade proverbial, a reprodução dessas armas, pertencentes ao senhor de Pressigny, variam grandemente de armorial para armorial. Abordá-las detalhadamente demandaria uma postagem específica. Aqui me cinjo a observar como seria o brasonamento atual com base no desenho do nosso artista: fascé contrefascé de quatre pièces, à la pointe partie, au chef palé contrepalé, chargé de deux cantons gironnés, tout d'azur et d'or; sur le tout d'argent/faixado contrafaixado de quatro peças, com uma ponta partida e um chefe palado contrapalado, carregado de dois cantões gironados, tudo de azul e ouro; sobre o todo, um escudete de prata.
No começo do século XVI, Guillaume Nyverd imprimiu o Tratado Prinsault sob o título de Le blason des armes, nouvellement imprimé. A impressão de uma obra que circulava manuscrita havia mais de cinquenta anos e impunha dificuldades técnicas, pelo fato de ser ilustrada a cores, prova uma notável popularidade. No entanto, à medida que a heráldica se complexificava, fez-se necessária a produção de obras mais amplas e profundas. Futuramente, pretendo empreender a edição e tradução de alguma destas.
Notas:
(1) De pourpre à deux aiglettes d'or et deux lions du même, cantonnés et alternés.
(2) D'argent à deux bandes de gueules, bordées engrêlées de sable.
(3) D'argent à deux gémelles de sable, au pal de gueules brochant sur le tout.
(4) De gueules au pal de sinople, accosté de deux demi-vols d'or, mouvants du pal.
(5) D'or à l'écusson d'azur, à la filière de gueules.
(6) D'or au chef de sable, au lion de gueules brochant.
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