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11/04/21

HERÁLDICA ECLESIÁSTICA PESSOAL: ARMAS GENTILÍCIAS

Ao adotar a heráldica, os clérigos introduziram uma série de caracteres interessantes, como um uso singular das armas gentilícias.

No dia 25 do mês passado, o papa Francisco concedeu o título de basílica menor à igreja matriz de Nossa Senhora da Guia de Acari. Acrescentei uma nota sobre isso à postagem de 08/03, em que apresentei uma proposta de brasão para o município de Acari. Agora, acabadas a edição e tradução do Tratado Prinsault, vou aproveitar esse acontecimento para fazer outra série de postagens avulsas antes de empreender um projeto novo. Com efeito, a armaria eclesiástica está entre os meus interesses principais no campo da heráldica. Nesta postagem, vou abordar a evolução das armas eclesiásticas pessoais.

Como adiantei na postagem de 09/01, a expansão social da heráldica concluiu-se quando os clérigos começaram a tomar armas para si. Isso aconteceu quando o sistema primitivo deu lugar ao clássico. Aquele tinha um caráter senhorial e guerreiro que em nada condizia com a clerezia; neste, o escudo tornou-se o campo por antonomásia do brasão e, ao ganhar vários significados metafóricos a partir da função de arma defensiva, pôde ser assumido por toda a sociedade, independentemente do engajamento em atividades militares.

Assim, desde o começo houve duas espécies de armas eclesiásticas: as pessoais e as de dignidade. Aquelas são as assumidas por cada clérigo tal como o faziam os leigos. Estas são as que identificam as dioceses. Ao longo da história da heráldica eclesiástica, essas duas espécies misturaram-se para produzir o que hoje é característico dessa dimensão da armaria.

Com efeito, em matéria heráldica até hoje a igreja cingiu-se a regular os ornamentos externos. Isso implica em que nunca houve regra exclusiva para os clérigos quanto à constituição das armas em sentido estrito, o que lhes permitiu ficar à margem do sistema de diferenças que regia a transmissão das armas gentilícias. Ora, estando o seu brasão já diferençado pelas insígnias da dignidade eclesiástica (galero, cruz, mitra, báculo) e impelido pelo celibato a não o legar, o clérigo podia assumir as armas da sua linhagem sem lesar os direitos do chefe desta, fosse seu pai ou seu irmão. Os exemplos dessa prática social são inúmeros. Vou escolher um próximo ao meu lugar de fala.

Dom Francisco Xavier Aranha foi ordenado bispo em 1754 e nomeado titular de Termópilas e coadjutor de Olinda. Nascido em Arronches em 1694, fora deão da catedral de Miranda. Três anos depois de chegar a Pernambuco, sucedeu a Dom Frei Luís de Santa Teresa como oitavo bispo de Olinda. Permaneceu aí até o seu falecimento, em 1771. O seu pastoreio coincidiu com a gestão de Sebastião José de Carvalho e Melo à frente da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino (1756-1777). Qualquer português ou brasileiro minimamente versado em história pátria já ouviu falar desse secretário do rei Dom José por meio do seu título nobiliário: o marquês de Pombal. Comparado em poder a um primeiro-ministro de monarquia constitucional, é consabido o seu empenho em reformar o estado português à luz do pensamento político dominante então: o despotismo esclarecido.

Como o estado e a igreja eram uma só coisa, Dom Xavier Aranha desempenhou um papel de monta no avanço da colonização. Com efeito, erigiu várias capelas a paróquias em todo o território da diocese, que abrangia a capitania de Pernambuco e as suas anexas (Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte), como as de Extremoz (1755), Pau dos Ferros (1756), Arês (1758), Portalegre (1761), São José do Rio Grande (hoje do Mipibu; 1762) e Apodi (1766), para citar as potiguares. Como expus na postagem de 28/02, a ereção a freguesia era o primeiro passo para que o povoado fosse elevado a vila. Também executou a ordem régia de expulsar os jesuítas em 1759, construiu o aljube de Olinda (hoje Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco) em 1765 e concluiu o Palácio da Soledade, a residência episcopal (hoje Museu de Arqueologia e Ciências Naturais da Universidade Católica de Pernambuco), em 1764.

Retrato de Dom Francisco Xavier Aranha, conservado no retábulo da igreja matriz de Arronches (imagem disponível no blog da paróquia de Arronches).
Retrato de Dom Francisco Xavier Aranha, conservado no retábulo da igreja matriz de Arronches (imagem disponível no blog da paróquia de Arronches).

No campo da heráldica, Dom Xavier trazia as armas direitas dos Aranhas: de azul com uma asna de prata, acompanhada de três flores de lis de ouro e carregada de um escudete de vermelho com uma banda de prata, sobrecarregada de três aranhas de negro, postas no sentido da banda. Há pelo menos duas reproduções coetâneas: um retrato do bispo, conservado no retábulo da igreja matriz de Arronches e datado de 1758, e uma escultura do brasão, fixada na frontispício do antigo aljube de Olinda. Ambas estão ornamentadas com as insígnias episcopais: a cruz, a mitra, o báculo e o galero verde de doze borlas. A escultura contém também as chaves passadas em aspa, mais próprias do papado que do episcopado. Talvez o artista as tenha acrescentado por mero barroquismo.

Brasão de Dom Francisco Xavier Aranha, esculpido no frontispício do antigo aljube de Olinda (imagem disponível no Blog do Abelhudo).
Brasão de Dom Francisco Xavier Aranha, esculpido no frontispício do antigo aljube de Olinda (imagem disponível no Blog do Abelhudo).

O brasão de Dom Xavier Aranha exemplifica de forma muito ilustrativa duas práticas heráldicas do Antigo Regime. Uma é a que enunciei acima: os clérigos costumavam usar de armas gentilícias. A segunda é que, considerando a sua origem humilde, parece inverossímil que tivesse direito às armas dos Aranhas. É mais crível que seja mais um caso de conexão de um sobrenome (ou apelido no português europeu) a uma linhagem armoriada de sobrenome homófono, como era normal na heráldica lusófona até o fim das monarquias.

Armas de Dom Francisco Xavier Aranha, oitavo bispo de Olinda: de azul com uma asna de prata, acompanhada de três flores de lis de ouro e carregada de um escudete de vermelho com uma banda de prata, sobrecarregada de três aranhas de negro, postas no sentido da banda; insígnias de bispo.
Armas de Dom Francisco Xavier Aranha, oitavo bispo de Olinda: de azul com uma asna de prata, acompanhada de três flores de lis de ouro e carregada de um escudete de vermelho com uma banda de prata, sobrecarregada de três aranhas de negro, postas no sentido da banda; insígnias de bispo.

De fato, Dom Xavier Aranha ascendeu ao alto clero menos por privilégio e mais por mérito, graças à sua formação acadêmica e à sua experiência na gestão da diocese de Miranda. Isso é, efetivamente, reflexo do iluminismo: em virtude do padroado, o ministério episcopal tinha natureza meio política, mas na igreja portuguesa desde a segunda década do século XVIII cresceu certo reformismo (a chamada jacobeia) que advogava eleições de bispos mirando menos os interesses políticos e mais a profundidade da vocação, o preparo intelectual e o compromisso com a disciplina eclesiástica. No entanto, que Dom Xavier tenha assumido as armas de uma linhagem fidalga homônima do seu sobrenome demonstra que se sustentava certa aparência de estabilidade, o que, de resto, é bem característico do Antigo Regime.

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