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21/04/21

HERÁLDICA ECLESIÁSTICA COMUNITÁRIA: BRASÕES DIOCESANOS

Na heráldica eclesiástica, as armas de dignidade antecederam as pessoais, ainda que estas se tenham desenvolvido por toda a parte e aquelas, não.

Na primeira postagem desta série, expus que na heráldica eclesiástica sempre houve armas pessoais e de dignidade e que umas e as outras se influíram mutuamente para produzir o que é característico desta subárea. Como também tenho dito, o meio guerreiro em que a heráldica se desenvolveu repelia o clero. Mais uma vez, a perenidade dos selos dá-nos o contraste: os dos senhores laicos mostra-os a cavalo, armados primeiro de lança com pendão e escudo, depois de espada e escudo, ao passo que os dos bispos mostra-os sentados, com o báculo numa mão e um livro na outra, ou abençoando.

Armas do bispo-conde de Noyon, par de França: de azul, semeado de flores de lis de ouro, com dois báculos adossados de prata, brocantes.
Armas do bispo-conde de Noyon, par de França: de azul, semeado de flores de lis de ouro, com dois báculos adossados de prata, brocantes.

Na verdade, o fato de os clérigos terem tardado a assumir brasões não implica na ausência de armas eclesiásticas durante o período primitivo da heráldica. Ora, no norte da França alguns bispos possuíam jurisdição temporal, tal como os senhores laicos que estavam sob a sua jurisdição espiritual e que forjaram a primeira forma do sistema heráldico. Será coincidência que a atestação remanescente mais antiga do que viria ser um brasão diocesano pertença ao bispado onde se situava o senhorio — o condado de Vermandois — ao qual pertence a atestação remanescente mais antiga do que viria ser um brasão gentilício? Refiro-me a uma moeda cunhada pelo bispo Renoldo (1174-1187), cujo anverso traz uma cruz entre dois báculos, catalogada por Faustin Poey d'Avant (1862) sob o número 6520. De azul, semeado de flores de lis de ouro, com dois báculos adossados de prata, brocantes viriam, com efeito, ser as armas do bispo-conde de Noyon, par de França.

Dinheiro do ducado de Langres, cunhado sob o governo do bispo Guilherme de Joinville (1209-1210) (imagem disponível no site da CGB Numismatique Paris).

Ainda mais claro que esse testemunho é um dinheiro cunhado por Guilherme de Joinville, bispo-duque de Langres (1209-1210): traz um escudo carregado de uma aspa, cantonada de quatro flores de lis. De azul, semeado de flores de lis de ouro, com uma aspa de vermelho, brocante sobre tudo eram as armas dessa diocese e senhorio.

Todas essas premissas esclarecem como a armaria adentrou a igreja: as armas de dignidade antecederam as pessoais. Por desempenharem dignidades temporais, alguns bispos não podiam ficar à margem da heráldica, pois se a forma primitiva desta era beligerante, também tinha caráter feudal. O bispado de Langres, por exemplo, abrangia uma rede de mosteiros já influente sob a dinastia carolíngia, um dos focos da renascença desse tempo, e foi aí que em 1098 São Roberto de Molesme fundou a ordem cisterciense e São Bernardo de Claraval (1090-1153), doutor da Igreja, nasceu e viveu. Tendo este apoiado fervorosamente os templários, esse bispado era um dos bastiões dessa ordem. Foi, ademais, elevado a pariato de França por ocasião da célebre sagração do rei Filipe Augusto em 1179. Portanto, o bispo-duque era não só suserano de vários vassalos, mas um senhor tão poderoso quanto o duque da Borgonha, cuja corte  a cidade de Dijon  ficava dentro dessa diocese.

Selo de Balduíno de Luxemburgo, arcebispo-eleitor de Tréveris (imagem disponível no site Trierer Originale).

Mesmo quando os bispos começaram a fazer uso de armas gentilícias, ainda davam o lugar de honra ao brasão diocesano, como o exemplifica o selo de Balduíno de Luxemburgo, arcebispo-eleitor de Tréveris (1307-1354): mostra-o sentado, abençoando com uma mão e segurando com a outra o báculo, entre dois escudos, à sua direita as armas do arcebispado (de prata com uma cruz de vermelho) e à sua esquerda as da Casa de Luxemburgo (burelado de prata e azul com um leão de vermelho, brocante).

Florim de ouro de Gerlaco de Nassau, arcebispo-eleitor de Mogúncia (imagem disponível no site Künker).

Por fim, os bispos começaram a compor as armas de dignidade com as pessoais, como atestado por um florim de ouro cunhado por Gerlaco de Nassau, arcebispo-eleitor de Mogúncia (1354-1371) entre 1365 e 1371, cujo reverso traz um escudo partido, o primeiro com as armas do arcebispado (de vermelho com uma roda de seis raios de prata) e o segundo com as da Casa de Nassau (de azul, semeado de bilhetas de ouro, com um leão do mesmo, brocante, depois armado e lampassado de vermelho). Com efeito, essa convenção foi conservada até hoje nos países de línguas germânicas (1).

Assim, quando Bártolo de Sassoferrato escreveu no Tractatus de insigniis et armis (1358) que "quædam sunt insignia dignitatis vel officii, quæ potest portare quilibet habens illam dignitatem vel officium, ut insignia proconsularia et legatorum, sicut de facto videmus hodie insignia episcoporum, et ista potest portare quilibet habens illam dignitatem" (2), descrevia esse estado de coisas. No entanto, a assunção de armas pelos arcebispados e bispados deu-se de modo regular somente no Sacro Império, onde ainda havia trinta principados arquiepiscopais e episcopais em 1803 (3). Mesmo na França, esse fenômeno ocorreu de forma errática tanto no tempo como no espaço. Em Portugal, sequer se desenvolveu.

Selo de Dom Pedro Martínez de Argote, bispo de Évora (imagem publicada por Anísio Miguel Saraiva e Maria do Rosário Morujão em artigo de 2012).

Com efeito, segundo Anísio Miguel Saraiva, Maria do Rosário Morujão e Miguel Metelo de Seixas em artigo de 2014, o uso do selo pelo clero português é tão antigo quanto a fundação do reino, mas somente pelo fim do século XIII é que começou a figurar nele um escudo carregado de armas supostamente gentilícias e de meados do século seguinte em diante é que a presença da heráldica se tornou forte. Desde então até meados do XV, chegaram a aparecer dois escudos armoriados no mesmo selo, em certos casos iguais, ambos gentilícios, e noutros diferentes, um forçosamente gentilício e o segundo difícil de identificar. Na segunda metade desse século, eram sempre iguais. O exemplar remanescente mais antigo em que é possível reconhecer o brasão é o selo de Dom Pedro Martínez de Argote, bispo de Évora, que data de 1322 e em que se veem dois escudos, ambos carregados das armas da linhagem castelhana dos Argotes: de vermelho com uma cruz de veiros.

Em suma, a armaria eclesiástica comunitária não faz parte da tradição heráldica portuguesa, ao menos não os brasões diocesanos. Ora, até mesmo o condado de Arganil, cujo titular era o bispo de Coimbra, não possuía armas próprias: cada bispo usava das suas pessoais, ornando-as com as insígnias condais e episcopais. Efetivamente, das vinte dioceses portuguesas atuais, apenas sete assumiram brasões (4), suspeito de que todos em tempo recente, certificadamente o daquela que é a mãe de todas as igrejas do ultramar português — a diocese do Funchal —, adotado em 2019, como informado no site da instituição.

Brasão da diocese do Funchal: terciado curvado e recurvado em mantel, o primeiro de vermelho com um livro de ouro, carregado de um Α e um Ω de vermelho; o segundo de azul com uma estrela de oito raios de prata; o terceiro de ouro com uma cruz da Ordem de Cristo, acompanhada de um pé ondado de azul e prata (imagem disponível no site da instituição) (5).

Essa diocese foi criada em 1514. Inicialmente sufragânea de Lisboa, foi elevada a arquidiocese em 1533, abrangendo então todas as conquistas ultramarinas: as dioceses de Goa, Santiago de Cabo Verde, Angra, São Tomé e São Salvador da Bahia, todas dela desmembradas. Em 1551, poucos meses após a criação desta última, a arquidiocese do Funchal foi extinta e todas se tornaram sufragâneas de Lisboa.

A propósito, uma parcela razoável das dioceses brasileiras tem bons brasões. Mas se tal uso não advém da heráldica portuguesa, de onde terá chegado? Pelo estilo e pela localização da maioria na Região Nordeste, a minha hipótese é: mais uma contribuição do irmão Paulo Lachenmayer à armaria nacional. Tendo nascido e se formado na Alemanha, para ele era natural que as dioceses possuíssem brasões e, de fato, ordenou um bocado deles, como o da arquidiocese de Salvador.

Notas:
(1) Mais precisamente a 
Alemanha, a Áustria, a Dinamarca, a Islândia, Liechtenstein, a Noruega, os Países Baixos, a Suécia, a Suíça, o Reino Unido e em geral o mundo anglófono. Também a Finlândia e a Tchéquia, provavelmente pela influência das heráldicas sueca e alemã, respectivamente. A Bélgica, o Canadá e Luxemburgo são exceções notáveis, provavelmente pela influência da heráldica francesa.
(2) "Certas insígnias são de dignidade ou função, as quais pode trazer qualquer um que tenha a dignidade ou função, como as insígnias proconsulares e dos legados. De fato, vemos hoje as insígnias dos bispos: pode trazê-las qualquer um que tenha essa dignidade."
(3) Além do próprio Vaticano, Andorra é o derradeiro remanescente dessa espécie de estado: tem dois copríncipes, um laico, o presidente da República Francesa, herdeiro de uma longa sucessão de senhorios, e um eclesiástico, o bispo de Urgell, na Espanha.
(5) Para um crítica do terciado em mantel, leia-se o comentário ao brasão de Dom Frei Manoel Delson Pedreira da Cruz, na postagem de 17/04.

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