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23/04/21

ARMORIAL DIOCESANO

Graças ao trabalho do Ir. Paulo Lachenmayer e do seu discípulo, Víctor Hugo Carneiro Lopes, é possível elaborar bons armoriais de dioceses brasileiras.

Como eu disse na postagem anterior, a arquidiocese do Funchal, que existiu de 1533 a 1551, é a mãe de todas as igrejas do mundo lusófono fora de Portugal continental, pois dela foram desmembradas as dioceses de:

  • Angra, que abrange o arquipélago dos Açores;
  • Santiago de Cabo Verde, que abrangia o arquipélago de Cabo Verde e se estendia pela costa africana do rio Senegal ao cabo das Palmas, portanto dela se desmembraram a diocese de Bissau e a do Mindelo;
  • São Tomé, que abrangia as ilhas do golfo da Guiné e se estendia pela costa desde o dito cabo até o das Agulhas, portanto dela se desmembrou a diocese de Angola e Congo (hoje arquidiocese de Luanda; desta, as demais angolanas);
  • Goa, que se estendia pela costa desde o dito cabo até o Extremo Oriente, portanto dela se desmembraram a diocese de Macau (desta, a de Díli, hoje arquidiocese) e a administração apostólica de Moçambique (hoje arquidiocese de Maputo; desta, as demais moçambicanas);
  • São Salvador da Bahia, que abrangia as conquistas na América, portanto dela se desmembraram as dioceses brasileiras.

Nesta postagem, darei os brasões das dioceses que formam a província eclesiástica de Natal sob um critério diacrônico, isto é, através dos sucessivos desmembramentos desde a criação da diocese de Salvador até a de Caicó.

Arquidiocese de São Salvador da Bahia

O bispado de São Salvador da Bahia foi criado em 1551 pela bula Super specula militantis Ecclesiæ, do papa Júlio III. A diocese foi desmembrada da arquidiocese do Funchal e abrangia a América portuguesa. Em 1575, pela bula In supereminenti militantis Ecclesiæ, do papa Gregório XIII, foi criada a prelazia de São Sebastião do Rio de Janeiro, que se estendia do rio Jequitinhonha para o sul, e em 1614, pela bula Fasti novi orbis, do papa Paulo V, a de Pernambuco, do rio São Francisco para o norte (esta foi extinta em 1624 pela bula Romanus Pontifex, do papa Urbano VIII), ambas desmembradas dela. Em 1676, foi elevada a arquidiocese pela bula Inter pastoralis officii curas, do papa Inocêncio XI, abrangendo as dioceses africanas de São Tomé e de Angola e Congo e as novas do estado do Brasil: Olinda e São Sebastião do Rio de Janeiro, criadas na mesma ocasião, respectivamente pelas bulas Ad sacram Beati Petri sedem e Romani Pontificis pastoralis sollicitudo.  As dioceses do estado do Maranhão — São Luís (1677) e Belém do Pará (1720) — foram sufragâneas da arquidiocese de Lisboa desde as suas criações até 1828. Atualmente são sufragâneas suas as dioceses de Alagoinhas, Amargosa, Camaçari, Cruz das Almas, Eunápolis, Ilhéus, Itabuna, Teixeira de Freitas-Caravelas. A sua sé está na Catedral Basílica do Santíssimo Salvador, em Salvador, e o seu arcebispo é Dom Sérgio Cardeal da Rocha. Em 1980, a Santa Sé, por decreto da Sagrada Congregação para os bispos, concedeu-lhe o título honorífico de sé primacial do Brasil e o de primaz do Brasil ao seu arcebispo.

Brasão da arquidiocese de São Salvador da Bahia: partido de azul e ouro com um mundo entrecambado; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.
Brasão da arquidiocese de São Salvador da Bahia: partido de azul e ouro com um mundo entrecambado; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

A arquidiocese de São Salvador da Bahia traz partido de azul e ouro com um mundo entrecambado; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspaEste brasão foi criado pelo irmão Paulo Lachenmayer, que de tantas referências já ganhou um marcador próprio neste blog. Dom Murilo Krieger, arcebispo emérito de Salvador, em livro de 2019, publicou uma nota manuscrita do Ir. Paulo:

Brasão de Armas da Arquidiocese Primacial do Brasil, "SSmi. Salvatoris". Criada Diocese aos 25-II-1551 e elevada à categoria de Arquidiocese aos 16-XI-1676. Escudo: Partido de azul e ouro, com um mundo entrecambado. Insígnias: Mitra, cruz patriarcal e báculo. Comentário: Na terminologia heráldica, entende-se por mundo um globo com um cinto e um arco na parte superior, rematado com uma cruzeta, que é o símbolo do Salvador do Mundo. Como tal, já foi aplicado nos pórticos laterais da antiga Sé primacial. Salvador, 27 de junho de 1955. Ir. Paulo Lachenmayer, O.S.B.

O que acrescentar a essa nota sucinta, mas absolutamente clara? Primeiro, que se saiu da lavra do Ir. Paulo, é seguro antever uma altíssima qualidade heráldica. De fato, é um brasão singelo, belo e representativo. Segundo, a própria imagem do Santíssimo Salvador venerada na catedral basílica e depositada acima do arco triunfal ostenta o orbe que é o atributo icônico desse título de Jesus Cristo.

Imagem do Santíssimo Salvador, venerada na catedral basílica de Salvador (imagem no site do templo).
Imagem do Santíssimo Salvador, venerada na catedral basílica de Salvador (imagem no site do templo).

Como o Ir. Paulo esclarece na nota citada, na armaria esse orbe tem o nome de mundo e apresenta uma forma convencional: consiste num círculo carregado de uma faixa, que equivale ao equador e se denomina cinta, e uma meia pala, que equivale à metade de um meridiano e se denomina arco, rematado por uma cruzeta. Assim, quando se lê um mundo de E(smalte) em certo brasonamento, é essa figura que se há de conceber e desenhar. Se a cinta e o arco têm esmalte diferente da esfera, brasona-se cintado de E; se difere o esmalte da cruz, cruzado de E. Na iconografia do Santíssimo Salvador, ordinariamente o mundo é pintado de azul e os acessórios — não necessariamente iguais ao objeto heráldico  são dourados. Daí os esmaltes escolhidos.

Arquidiocese de Olinda e Recife

A prelazia de Pernambuco foi criada em 1614 pela bula Fasti novi orbis, do papa Paulo V. O seu território foi desmembrado da diocese de São Salvador da Bahia e estendia-se do rio São Francisco para o norte. Porém em 1624, logo após a invasão holandesa de Salvador, o papa Urbano VIII extinguiu-a pela bula Romanus PontifexO bispado de Olinda foi criado em 1676 pela bula Ad sacram Beati Petri sedem, do papa Inocêncio XI. Tinha o mesmo território da antiga prelazia e era sufragânea da arquidiocese de São Salvador da Bahia. No ano seguinte, o mesmo pontífice, por meio da bula Super universas orbis ecclesias, desmembrou-lhe o território ao norte do rio Parnaíba para a criação da diocese de São Luís, a cuja jurisdição passou a capitania do Piauí em 1728. Desde então até 1854, a diocese olindense abrangia as capitanias, depois províncias, de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e Alagoas. Nesse ano, foi criada a diocese do Ceará (hoje arquidiocese de Fortaleza) pela bula Animarum salute, do papa Pio IX, abrangendo essa província. Em 1892, foi criada a diocese da Paraíba (hoje arquidiocese) pela bula Ad universas orbis ecclesias, do papa Leão XIII, abrangendo os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Em 1910, a Santa Sé, por decreto da Sagrada Congregação Consistorial, elevou-a a arquidiocese, abrangendo as dioceses da Paraíba, Alagoas e Natal (hoje todas arquidioceses). Em 1918, foi renomeada de Olinda e Recife pela bula Cum urbis Recife, do papa Bento XV. Atualmente são sufragâneas suas as dioceses de Afogados da Ingazeira, Caruaru, Floresta, Garanhuns, Nazaré, Palmares, Pesqueira, Petrolina e Salgueiro. A sua sé está na Catedral de São Salvador do Mundo, em Olinda, servindo a Igreja de São Pedro dos Clérigos, no Recife, de concatedral. O seu arcebispo é Dom Antônio Fernando Saburido.

Brasão da arquidiocese de Olinda e Recife: partido, o primeiro de azul com um mundo de ouro, cintado de vermelho; o segundo também de azul com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho, sustendo uma cruz alta do mesmo; brocante sobre a partição, um pé ondado de prata e azul; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.
Brasão da arquidiocese de Olinda e Recife: partido, o primeiro de azul com um mundo de ouro, cintado de vermelho; o segundo também de azul com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho, sustendo uma cruz alta do mesmo; brocante sobre a partição, um pé ondado de prata e azul; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

A arquidiocese de Olinda e Recife traz partido, o primeiro de azul com um mundo de ouro, cintado de vermelho; o segundo também de azul com um leão de ouro, armado e lampassado de vermelho, sustendo uma cruz alta do mesmo; brocante sobre a partição, um pé ondado de prata e azul; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

Não encontro informação sobre a criação desse brasão na Internet, mas pelo estilo não deve ser obra nem do Ir. Paulo Lachenmayer nem de discípulo seu. Na verdade, a arquidiocese usa um desenho de baixa qualidade, daí que me tenha dado algumas licenças ao fazer o meu. Com efeito, trata-se de armas compostas: o primeiro partido contém a figura principal do brasão de Olinda e o segundo, as da bandeira do Recife. A função precípua da partição é, precisamente, reunir dois ou mais brasões, de modo que a combinação da mesma cor sequer infringe a regra de iluminura. Defeituoso é dividir o campo sem essa razão ou uma alternância de um no outro ou de um para o outro, mas apenas para acomodar figuras diferentes. Mesmo assim, duas soluções poderiam ter resolvido o inconveniente da cor igual: acomodar as figuras num campo íntegro de azul (neste caso, brasonar-se-ia: de azul à destra com um mundo... e à sinistra com um leão...) ou sobrepor um filete de metal ao traço da partição.

Imagem do Santíssimo Salvador, venerada na catedral de Olinda (imagem disponível no site da arquidiocese de Olinda e Recife).
Imagem do Santíssimo Salvador, venerada na catedral de Olinda (imagem disponível no site da arquidiocese de Olinda e Recife).

As armas municipais de Olinda são de azul com um mundo de ouro, cintado de vermelho; chefe de ouro com um leão aleopardado de vermelho, armado de negro. Tal como a sé primacial do Brasil, a olindense também está dedicada sob o título do Santíssimo Salvador. Portanto, esse mundo é a mesma figura de que tratei ao comentar o brasão da arquidiocese de Salvador. No site da prefeitura de Olinda, descreve-se "um globo terrestre encimado por uma Cruz Latina, circulado por um zodíaco" e informa-se que está esculpido na fachada da Igreja de São Sebastião, no prédio que abriga hoje o Museu Regional de Olinda (MUREO) e na Bica do Rosário. Mas para mim está claro que alguém observou esses emblemas e imaginou essa descrição, completamente errônea da perspectiva heráldica:

  • Um mundo e um globo terrestre são coisas diferentes. Um mundo compõe-se de um círculo ou esfera que representa a Terra de forma estilizada. Um globo terrestre é um desenho desse objeto, com todos os elementos que ordinariamente apresenta.
  • Um mundo não é encimado, mas rematado por uma cruz. Na armaria, rematado diz-se da figura que tem outra em cima de si e encimado, da figura que tem outra logo acima de si, mas não se tocam. Além disso, essa cruz não é latina, mas uma cruzeta. A travessa da cruz latina (ou alta) fica acima do meio da haste, ao passo que as extremidades da cruzeta (ou cruz grega) têm o mesmo tamanho.
  • O mais estranho: um globo terrestre circulado por um zodíaco? O zodíaco é um constituinte de uma esfera celeste, não de um globo terrestre.

Um escultor ou pintor não tem por que entender de heráldica, de modo que na iconografia do Santíssimo Salvador pode figurar um orbe com uma cruz valendo-se de relativa liberdade. Essa liberdade foi indevidamente transposta para o desenho das armas municipais usado pela prefeitura de Olinda (e pela arquidiocese): a cinta do mundo está posta em banda. Na reprodução de um brasão, um artista pode ornar menos ou mais a figuração de um mundo, mas não modificar os seus elementos essenciais. Corrigi-o, pois, na minha reprodução.

Armas de Duarte Coelho no Tesouro da nobreza (1675), de Francisco Coelho, rei de armas Índia.
Armas de Duarte Coelho no Tesouro de nobreza (1675), de Francisco Coelho, rei de armas Índia.

Quanto ao leão, todos — o dos brasões de Olinda e da arquidiocese, os dos suportes do brasão do Recife, o da bandeira do Recife, o do timbre do emblema de Pernambuco — compartilham a mesma proveniência: as armas de Duarte Coelho, o primeiro donatário de Pernambuco, que trazia "o campo d'ouro e um lião de púlpara passante e ũa cruz de sua cor, firmada em um pé de verde, e um chefe de prata com cinco estrelas de vermelho, afogueadas d'ouro, e ũa bordadura d'azul com cinco castelos de prata cubertos, com as portas e frestas e lavrados de preto", segundo a carta de brasão, transcrita por Anselmo Braamcamp Freire na Armaria portuguesa (1908). Daí também a cruz latina, que figura, além do mais, na bandeira de Pernambuco.

Enfim, o pé d'água. O estuário do rio Capibaribe uniu a vila de Olinda, depois cidade, e o povoado do Recife, depois vila, desde o começo da colonização: Olinda tinha uma situação mais segura e salubre, mas o porto natural que esse estuário oferecia garantiu tal progresso ao Recife que arrebatou de Olinda a condição de capital de Pernambuco.

Arquidiocese da Paraíba

O bispado da Paraíba foi criado em 1892 pela bula Ad universas orbis ecclesias, do papa Leão XIII. A diocese foi desmembrada daquela de Olinda e abrangia os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte, mas em 1909 o papa São Pio X, por meio da bula Apostolicam in singulis, desmembrou-lhe o território desse estado para a criação da diocese de Natal. Em 1914, o mesmo pontífice, por meio da bula Majus Catholicæ religionis incrementum, elevou-a a arquidiocese e desmembrou-lhe a metade ocidental do estado, compreendida na bacia do rio Piranhas, para a criação da diocese de Cajazeiras, de modo que lhe ficaram sufragâneas esta e a de Natal (hoje arquidiocese). Atualmente são sufragâneas suas as dioceses de Cajazeiras, Campina Grande, Guarabira e Patos. A sua sé está na Catedral Basílica de Nossa Senhora das Neves, em João Pessoa, e o seu arcebispo é Dom Frei Manoel Delson Pedreira da Cruz.

Brasão da arquidiocese da Paraíba: de azul, semeado de flocos de neve de prata, com uma cruz chã de prata, carregada de uma estrela de seis raios de azul e brocante; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.
Brasão da arquidiocese da Paraíba: de azul, semeado de flocos de neve de prata, com uma cruz chã de prata, carregada de uma estrela de seis raios de azul e brocante; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

A arquidiocese da Paraíba traz de azul, semeado de flocos de neve de prata, com uma cruz chã de prata, carregada de uma estrela de seis raios de azul e brocante; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa. Este brasão foi também criado pelo Ir. Paulo Lachenmayer. Num blog antigo da arquidiocese, achei uma postagem com a transcrição da sua nota:

Brasão de Armas da Arquidiocese de N.ª Senhora das Neves, de Paraíba, elevada em 1914. Escudo: De azul, semeado de flocos de neve, de prata, uma cruz plena, do mesmo metal, carregada com uma estrela de seis raios, de azul. Insígnias: Metropolitanas; mitra, dobre-cruz e báculo. Comentário: O escudo é dedicado à Padroeira da Arquidiocese, N.ª Senhora das Neves. Devoção essa que tem a sua origem na construção da Basílica Santa Maria Maior, com a manjedoura da Gruta de Belém. Segundo a tradição, o local foi indicado por neve no pleno verão, à qual o Papa Libério obedeceu como Sinal Celeste. Como todas as Basílicas Maiores, também esta foi reconstruída e a data da consagração, pelo Papa Sixto III, é feita no calendário litúrgico para o dia vespertino da Festa da Transfiguração de N. Senhor Jesus Cristo, 5 de agosto. A estrela, N.ª Senhora, que nos comunicou a Luz, Cristo na manjedoura, "venite adoremus". Nasceu o Redentor nas trevas do mundo, para que tenhamos a Luz para a nossa salvação e o esclarecimento à nossa mente a seguir, com o auxílio da celeste Padroeira, o sinal da Cruz, Nossa Luz. São Paulo, 18 de novembro de 1980. Ir. Paulo Lachenmayer, O.S.B.

Como eu disse na postagem de 28/02, chama a atenção que João Pessoa e Natal, apesar de que eram povoações minúsculas, tenham sido fundadas com o estatuto de cidades, quando o normal era que o lugar conquistasse certa importância para ser elevado primeiro a freguesia, depois a vila e, em casos especiais, a cidade. De fato, o caso era especial de certo ponto de vista: no fim do século XVI, os franceses visavam a costa habitada pelos potiguaras, usando os portos naturais desde a barra do Paraíba até a do Ceará-Mirim para carregar os seus navios de pau-brasil, tudo em aliança com os nativos. Os portugueses tiveram, então, de assegurar o domínio dessa área: em 1574 foi desmembrada de Itamaracá e criada a capitania real da Paraíba; em 1582 a do Rio Grande reverteu ao domínio real; em 1585 e 1599 foram fundadas duas cidades junto aos dois estuários maiores: Filipeia e Natal, cada uma guardada por uma fortaleza na entrada da barra.

A essas alturas, Portugal já estava em união dinástica com Castela, sob o reinado de Filipe I, daí o nome da mais antiga dessas duas cidades: Filipeia. Daí também a dedicação da sua igreja matriz sob o patrocínio de Nossa Senhora das Neves. A origem desse título está ligada à construção da Basílica Papal de Santa Maria Maior, em Roma. Segundo a tradição, por não ter tido filhos, um casal de patrícios romanos quis legar os seus bens à Virgem Santa para edificar uma igreja sob a sua advocação. Esta lhes apareceu, então, em sonho, apontando o lugar para tal: o monte Esquilino. Ao comunicarem o acontecimento ao papa Libério (352-366), descobriram que ele tinha tido o mesmo sonho, e ao subirem ao monte, acharam o chão coberto de neve fresca. Era a manhã do dia 5 de agosto, portanto pleno verão. O pontífice demarcou o terreno nevado e nele ergueu o edifício, que o papa Sixto III (432-440) reconstruiu e dedicou solenemente. Em 431, o Concílio de Éfeso reconhecera que Maria Santíssima é a Mãe de Deus (Theotokos).

A fundação de Santa Maria Maior em Roma, de Matthias Grünewald (1519), conservada no Augustinermuseum, Friburgo na Brisgóvia.
A fundação de Santa Maria Maior em Roma, de Matthias Grünewald (1519), conservada no Augustinermuseum, Friburgo na Brisgóvia.

Conta-se que o artesoado de Santa Maria Maior foi ornado com o ouro que os Reis Católicos doaram ao papa Alexandre VI, do primeiro carregamento vindo da América. Com efeito, os monarcas espanhóis foram grandes benfeitores dessa basílica, de tal modo que em 1647 o cabido concedeu a Filipe IV o título de protocônego honorário, ao qual o rei da Espanha segue fazendo jus, conforme a bula Hispaniarum fidelitas (1953), do papa Pio XII. No pórtico da basílica há inclusive uma magnífica estátua de bronze desse rei, projetada por Gianlorenzo Bernini. Atualmente, o orçamento geral da Espanha destina um óbolo régio a Santa Maria Maior.

Expulsos os holandeses em 1654, Portugal já tinha restaurado a sua independência desde 1640, de modo que não contribuía nada com a legitimação da nova dinastia que uma cidade se chamasse Filipeia. Por isso, desde então foi simplesmente a cidade da Paraíba. O nome de João Pessoa foi-lhe imposto em 1930.

Depois de enfadar o paciente leitor com essa longa resenha histórica, abordo o brasão. Com efeito, põe uma questão que com certa frequência aparece no ordenamento de armas novas. Até onde a minha pesquisa alcança, não ocorre neve na armaria gentilícia portuguesa; na autárquica, há poucas ocorrências de cristais de neve, como se pode ver no brasão de Valezim, freguesia de Seia. Fora de Portugal, o uso dessa figura deixa ver que está consolidada na heráldica. Já a figuração do Ir. Paulo — pequenos círculos sob a nomenclatura de flocos de neve — parece de todo inovadora. A heráldica não repele a inovação (se o fizesse, não teria atravessado novecentos anos de história), mas mesmo que se adeque ao código, esta pode comportar a desvantagem de demandar uma consulta do desenho original, tal como se passa neste caso.

Enfim, a estrela é um símbolo mariano antiquíssimo: aparece acima da cabeça da Virgem com o Menino numa pintura que remonta ao século III, conservada nas Catacumbas de Priscila, em Roma. Sobre a sua cabeça e/ou o ombro direito, tornou-se convencional na iconografia bizantina. Além disso, entre as invocações da ladainha lauretana conta-se "Stella matutina", ou seja, "Estrela da manhã", a que reflete a luz do sol e, por isso, é o corpo celeste mais brilhante ao amanhecer e ao entardecer, tal como Maria Santíssima excele a todas as criaturas em virtude da encarnação do Verbo, que é a verdadeira luz (João, 1, 9). Também por nos servir de guia (João, 14, 6), como celebrado no primeiro verso e título do hino Ave, Maris Stella ('Ave, Estrela do Mar'), do século IX, e confirmado pela exortação apostólica Evangelii Nuntiandi (1975), de São Paulo VI, e pela Evangelii Gaudium (2013), do papa Francisco: a "Estrela da (Nova) Evangelização".

Para acabar, a prata corresponde à cor branca, própria da neve, ao passo que o azul é a cor mariana por excelência, especialmente ligada à Imaculada Conceição, cuja iconografia sempre traz um manto azul sobre a túnica cândida referida no Apocalipse (12, 1). Com efeito, o manto azul da Virgem Santa é uma das convenções icônicas mais bem estabelecidas em toda a igreja, observável nas imagens de vários outros dos seus títulos, como a estimada Salus Populi Romani, conservada na Basílica de Santa Maria Maior e reproduzida na catedral basílica de João Pessoa.

Arquidiocese de Natal

O bispado de Natal foi criado em 1909 pela bula Apostolicam in singulis, do papa São Pio X. A diocese foi desmembrada daquela da Paraíba e abrangia o estado do Rio Grande do Norte. Em 1934, o papa Pio XI, por meio da bula Pro ecclesiarum omnium, desmembrou-lhe a região oeste do estado, compreendida no vale do Açu e na bacia do rio Apodi, para criar a diocese de Mossoró, e em 1939 o papa Pio XII, por meio da bula E diœcesibus, desmembrou-lhe a região do Seridó para criar a diocese de Caicó. Em 1952, foi elevada a arquidiocese pela bula Arduum onus, do mesmo pontífice, abrangendo essas duas dioceses. A sua sé está na Catedral de Nossa Senhora da Apresentação, em Natal, e o seu arcebispo é Dom Jaime Vieira da Rocha.

Brasão da arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.
Brasão da arquidiocese de Natal: talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefe; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

A arquidiocese de Natal traz talhado de azul e vermelho com uma flor de lis cruzada de prata, brocante sobre a partição e acompanhada de uma estrela de oito raios do mesmo no cantão destro do chefetimbre: mitra; sob o escudo, uma cruz arquiepiscopal e um báculo passados em aspa.

Suponho que essas armas tenham sido criadas por Víctor Hugo Carneiro Lopes, passavante do Ir. Paulo Lachenmayer. Pessoalmente, não me agradam: não gosto da partição combinando cor com cor; não acho a flor de lis cruzada uma figura bonita; parece-me lamentável que a estrela não seja aquela que é o símbolo da cidade: a caudata. Apesar dessas ponderações, é um brasão perfeitamente aceitável.

Com efeito, a combinação de azul e vermelho tem-se repetido à exaustão na heráldica eclesiástica recente. Como disse no comentário ao brasão da arquidiocese da Paraíba, o azul é a cor mariana por excelência e o vermelho é a litúrgica da Paixão e do martírio. No entanto, o clero precisa aprender esta regra fundamental da armaria: o azul, o vermelho ou qualquer outra das cores combina-se com o ouro ou a prata (metais) ou com o arminho ou os veiros (peles).

Quanto à flor de lis, trata-se de uma figura heráldica de origem incerta. De certo, somente que lis ou lys em francês significa 'lírio'; isso indica o entendimento tradicional de que consiste numa estilização dessa flor. Ao fim e ao cabo, são figuras diferentes, o que em português é reforçado pela palavra açucena, preferível na linguagem do brasão para designar a flor. Em todo o caso, foi essa analogia que tornou a flor de lis um símbolo mariano, pois metáforas florais desde a Antiguidade tardia são evocadas pelos Padres da Igreja para abordar diversas questões mariológicas, como o fez São Pedro Damião (1007-1072) no seu terceiro sermão sobre a Natividade de Nossa Senhora:

Hodie impleta est prophetia illa, quam eximius Prophetarum Isaias, quasi præco factus ad adventum reginæ mundi, magna voce clamabat dicens: "Egredietur virga de radice Jesse, et flos de radice ejus ascendet". Et bene hæc incomparabilis Virgo virga dicitur, quæ per intensionem desiderii ad superna emicuit, non per siccitatem boni operis distortæ nodositatis vitium incurrit. De qua virga redemptor noster, quasi flos ascendit, qui martyribus et confessoribus suis totius orbis campos, velut rosis et liliis decoravit. Singularis namque flos sanctæ Ecclesiæ ipse est, sicut de semetipso in Cantico canticorum loquitur, dicens: "Ego flos campi et lilium convallium". Hoc lilium non in montibus, sed in convallibus nascitur, quia superbis Deus resistens, in humilium cordibus invenitur. Lilium vocatur Christus, lilium dicitur et Mater Christi, sicut in eodem Cantico subinfertur: "Sicut lilium inter spinas, sic amica mea inter filias". Sicut lilium inter spinas, sic beatissima Virgo Maria enituit inter filias, quæ de spinosa propagine Judæorum nata, candescebat munditia virgineæ castitatis in corpore, flammescebat autem ardore geminæ caritatis in mente, fragrabat passim odore boni operis, tendebat ad sublimia intentione continua cordis.

 Em vernáculo:

Hoje se cumpriu aquela profecia, que Isaías, o mais assinalado dos profetas, de certo modo feito arauto para o advento da rainha do mundo, em alta voz clamava, dizendo: "Um broto vai surgir do tronco seco de Jessé; das velhas raízes um ramo brotará". É justo que essa incomparável Virgem seja chamada de talo, que pela intensidade do anseio se elevou ao mais alto, e não por sequidão de boas obras se abateu o vício de distorcida nodosidade. Desse talo surgiu o nosso redentor como se fosse uma flor, que com os mártires e confessores ornou os campos do mundo todo como com rosas e lírios. De fato, ele é a flor singular da santa Igreja, tal como fala de si mesmo no Cântico dos Cânticos, dizendo: "Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales". Esse lírio não nasce nos montes, mas nos vales, porque Deus, que se opõe aos soberbos, se acha nos corações dos humildes. Cristo é chamado de lírio, também a Mãe de Cristo, como se acrescenta no mesmo Cântico: "Como o lírio entre espinhos, assim é minha amada, entre as moças". Assim como o lírio entre os espinhos, a bem-aventurada Virgem Maria brilhou entre as moças, a qual, nascida do espinhoso rebento dos judeus, alvejava pela pureza da virgínea castidade no corpo, flamejava pelo ardor de parelha caridade na mente, cheirava por toda a parte a boas obras, visava ao alto com contínuo esforço de coração. (tradução minha)

Efetivamente, a flor de lis como símbolo mariano antecede o brasão mais famoso que a carrega: de 1146 conserva-se um selo do cabido da catedral de Paris que traz Nossa Senhora sentada, segurando uma flor de lis com a mão direita e tendo outra sob os pés, ao passo que o testemunho remanescente mais antigo das armas do rei francês (de azul, semeado de flores de lis de ouro) remonta a 1211, ainda que como motivo ornamental ligado à realeza viesse de longa data.

Em particular, a flor de lis cruzada ou crucífera parece uma inovação de Víctor Hugo Carneiro Lopes, pois, ao que me consta, ocorre apenas na armaria eclesiástica brasileira e das outras quatro ocorrências em brasões diocesanos, de uma encontrei a sua autoria declarada: o brasão da diocese de Oliveira. Os demais são da arquidiocese de Belém do Pará e das dioceses de Miracema e de Sobral. Esse indício é reforçado pela semelhança do estilo, salvo o de Sobral. O significado da figura é de fácil inteligência, mas, como já disse, não acho que seja bonita. Em tempo, o desenho usado pela arquidiocese natalense mostra uma cruz acabada em fusos curvilíneos. Em francês, esse predicativo denomina-se retranché, mas como sequer tem denominação consagrada em português, parece excessivo brasoná-lo.

A essa crítica muito subjetiva adito que a flor de lis cruzada pouco ou nada diz sobre a advocação mariana que tutela a arquidiocese: Nossa Senhora da Apresentação. Na verdade, a imagem que se venera na catedral tem os atributos de Nossa Senhora do Rosário. Conta-se que foi encontrada dentro dum caixote, encalhado junto a uma pedra à margem do rio Potenji, onde hoje se ergue o monumento denominado Pedra do Rosário. Tal prodígio terá acontecido na manhã de 21 de novembro de 1753, que o calendário litúrgico dedica à memória da Apresentação de Nossa Senhora. Seja como for, consta que a igreja matriz da cidade, que retrocede aos primeiros anos do século XVII, sempre esteve dedicada sob o título de Nossa Senhora da Apresentação. Como a comunidade era pequenina e muito pobre, talvez carecesse de um ícone que atraísse a devoção popular, até que o achamento providencial do vulto de Nossa Senhora do Rosário preencheu esse vazio:  acompanhava-o a mensagem "onde esta imagem aportar, nenhuma desgraça acontecerá".

Até a Idade Moderna, a Apresentação de Nossa Senhora era uma festa própria da liturgia bizantina: só em 1585 o papa Sixto V incluiu-a definitivamente no calendário romano. A sua origem remonta à dedicação da Basílica de Santa Maria Nova em 21 de novembro de 543. Construída pelo imperador Justiniano o Grande em Jerusalém, foi devastada pelos persas quando conquistaram a cidade em 634 e destruída por um terremoto em 746. Segundo a fonte mais fidedigna, o chamado Protoevangelho de Tiago, a Menina Maria entrou no templo aos três anos de idade:

Et facta est triennis puella. Et dixit Joachim: "Vocate puellas Hebræorum immaculatas et accipiant singillatim lampades et sint accensæ, ne convertatur puella in posteriora et abducatur mens ejus ex templo Dei. Et fecerunt sic donec ingressæ sunt templum. Et recepit eam princeps sacerdotum et osculatus est eam et dixit: "Mariam, magnificavit Dominus nomen tuum in cunctis generationibus et in ultimis diebus manifestabit Dominus in te pretium redemptionis suæ filiis Israel". Et constituit illam super tertium gradum altaris et immisit Dominus Deus gratiam super ipsam, exsultabatque resiliendo pedibus suis, et dilexit eam tota domus Israel.

Em vernáculo: 

E a menina fez três anos. Joaquim disse: "Chamai as moças imaculadas dos hebreus e que uma a uma recebam lâmpadas e sejam acesas, para que a menina não se vire para trás e a sua mente se afaste do templo de Deus". Fizeram assim até que entraram no templo. O sumo sacerdote recebeu-a, beijou-a e disse: "Maria, o Senhor engrandeceu o teu nome em todas as gerações e nos últimos dias o Senhor manifestará em ti o preço da sua redenção para os filhos de Israel". Colocou-a sobre o terceiro degrau do altar e o Senhor Deus infundiu a sua graça sobre ela, e ela exultava saltitando com os seus pés, e amou-a toda a casa de Israel. (tradução minha)

Esse relato foi atribuído ao apóstolo Tiago o Menor, mas foi escrito provavelmente por um gentio converso em meados do século II. Sempre foi lido nas igrejas orientais, mas só foi difundido no Ocidente após a tradução de Guillaume Postel e edição de Theodor Bibliander em 1552, da qual tirei a citação acima. Apesar de apócrifo, a sua importância para o culto mariano foi reconhecida implicitamente por São Paulo VI (exortação apóstola Marialis cultus, 1974) e explicitamente por São João Paulo II (catequese de 15 de outubro de 1997).

Enfim, a estrela. Como a flor de lis cruzada já representa a padroeira, penso que essa estrela não seja um segundo símbolo mariano, mas que aluda ao nome da cidade e aos seus copadroeiros: os Santos Reis. Trata-se, pois, da Estrela de Belém, como é conhecida a referida no Evangelho segundo São Mateus (2, 1-2): "Depois que Jesus nasceu na cidade de Belém da Judeia, na época do rei Herodes, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo'". Evitando a polêmica da historicidade  que não vem ao caso —, fato é que desde o afresco de Giotto na Capela dos Scrovegni, pintado entre 1303 e 1305, se tornou muito habitual figurar tal estrela como um cometa na iconografia ocidental, especialmente na heráldica, onde comporta a vantagem de distingui-la claramente de outras estrelas. Com efeito, é a figura das armas municipais de Natal. Como expus no comentário ao brasão da arquidiocese da Paraíba, fortaleza e povoação faziam parte do mesmo plano para assegurar o domínio português sobre a Paraíba e o Rio Grande do Norte, que os franceses ameaçavam. A construção da fortaleza começou em 6 de janeiro de 1598 e a povoação foi fundada em 25 de dezembro de 1599, daí os seus nomes: Forte dos Reis Magos e cidade do Natal.

Diocese de Mossoró

O bispado de Mossoró foi criado em 1934 pela bula Pro ecclesiarum omnium, do papa Pio XI. A diocese foi desmembrada daquela de Natal e abrange o oeste do Rio Grande do Norte, compreendido no vale do Açu e na bacia do rio Apodi. Faz parte da província eclesiástica de Natal. A sua sé está na Catedral de Santa Luzia, em Mossoró, e o seu bispo é Dom Mariano Manzana.

Brasão da diocese de Mossoró: de prata com uma cruz de vermelho e uma espada de prata, empunhada de ouro, e uma palma de verde, passadas em aspa, brocantes sobre a cruz; brocante sobre tudo, um lenço de prata, carregado de dois olhos do mesmo, a íris de negro e a pupila de prata; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.
Brasão da diocese de Mossoró: de prata com uma cruz de vermelho e uma espada de prata, empunhada de ouro, e uma palma de verde, passadas em aspa, brocantes sobre a cruz; brocante sobre tudo, um lenço de prata, carregado de dois olhos do mesmo, a íris de negro e a pupila de pratatimbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.

A diocese de Mossoró traz de prata com uma cruz de vermelho e uma espada de prata, empunhada de ouro, e uma palma de verde, passadas em aspa, brocantes sobre a cruz; brocante sobre tudo, um lenço de prata, carregado de dois olhos do mesmo, a íris de negro e a pupila de pratatimbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.

Imagem de Santa Luzia venerada na catedral de Mossoró (imagem disponível no perfil da diocese no Facebook).
Imagem de Santa Luzia venerada na catedral de Mossoró (imagem disponível no perfil da diocese no Facebook).

A padroeira de Mossoró apresenta uma iconografia um tanto perturbadora para quem a contempla pela primeira vez: com uma mão segura uma palma e com a outra, um prato sobre o qual se veem dois olhos. Mesmo para quem a conhece, é curioso, pois se costuma figurar os mártires com objetos ligados à sua vida ou morte. Como distinguir, por exemplo, Santo Estêvão e São Lourenço? O primeiro traz um punhado de pedras, por ter sido apedrejado, e o segundo, uma grelha, por ter sido queimado vivo. No caso de Santa Luzia, foi a devoção popular que relacionou o seu nome ao sentido da visão: tanto Luzia como Lúcia vêm do nome latino Lucia, e este, da palavra lux, lucis 'luz'.

Santa Luzia, assim como outros mártires muito estimados, como São Sebastião, Santos Cosme e Damião, Santa Inês, pereceu sob a Grande Perseguição, que o imperador Diocleciano infligiu aos cristãos desde o ano de 303. Na verdade, os romanos sempre foram abertos ao sincretismo. A diferença do cristianismo é que a promessa de vida eterna num reino que não é deste mundo num mundo atravessado pela miséria e truculência consolava quase todas as camadas da população. Mas quando os imperadores se intitularam senhores e deuses, os cristãos, que creem num Deus e Senhor, foram de encontro ao estado. É preciso entender que se para um cristão render culto aos deuses romanos era ato de apostasia, para um romano não cristão negar-se a isso era ato de deslealdade a Roma. A reação de Diocleciano foi revivescer a tradição. Dentro da Tetrarquia (o governo compartilhado por dois augustos e dois césares), que inventara para remediar a instabilidade política e ineficiência administrativa, ele e Galério assumiram o agnome de Jóvio e Maximiano e Constâncio, o de Hercúleo, isto é, estavam associados respectivamente a Júpiter e Hércules.

Luzia foi denunciada pelo seu antigo noivo ao governador de Siracusa, onde morava. Desde criança, consagrara-se a Deus e fizera um voto de virgindade, mas só o revelou à mãe, que a prometera a esse jovem, após uma peregrinação ao túmulo de Santa Águeda, em Catânia, quando esta foi curada de uma doença grave. Ele não aceitou a rejeição, especialmente pela perda da herança que o pai de Luzia deixara e ela doava aos pobres. Condenada à prostituição forçada, obrou-se o primeiro milagre: o seu corpo tornou-se tão pesado que ninguém conseguia movê-la até o prostíbulo. O governador sentenciou, então, que se lhe ateasse fogo, mas as chamas não a tocavam, o segundo milagre. Por fim, um soldado passou o seu pescoço a fio de espada.

O brasão diocesano de Mossoró condensa os elementos essenciais de tudo isso e eis aí a maior virtude do seu criador, seja o Ir. Paulo Lachenmayer seja Víctor Hugo Carneiro Lopes, passavante seu, como se depreende pelo estilo, embora atualmente a diocese use um desenho de má qualidade, provavelmente uma vetorização ruim do original. Com efeito, não é fácil acomodar um par de olhos num escudo, muito menos sobre um prato. O recurso ao lenço e o arranjo com a espada e a palma em aspa são soluções muito inteligentes.

Em tempo, a palma é um símbolo antiquíssimo de vitória e imortalidade entre os povos do Oriente Médio, apropriado pelos romanos por intermédio dos gregos. Não só esteve presente na entrada de Jesus Cristo em Jerusalém, como narrado no Evangelho por São João (12, 13) e comemorado pela liturgia do Domingo de Ramos, mas também desde os primeiros tempos foi ressignificada pelos cristãos como símbolo de vitória sobre a vida mortal, especialmente pelo martírio: "Depois disso, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, gente de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; vestiam túnicas brancas e traziam palmas na mão" (Apocalipse, 7, 9).

Diocese de Caicó

O bispado de Caicó foi criado em 1939 pela bula E diœcesibus, do papa Pio XII. A diocese foi desmembrada daquela de Natal e abrange a região do Seridó norte-rio-grandense. Faz parte da província eclesiástica de Natal. A sua sé está na Catedral de Sant'Ana, em Caicó, e o seu bispo é Dom Antônio Carlos Cruz Santos.

Brasão da diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta, sobrecarregada de uma pérola, tudo de prata; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.
Brasão da diocese de Caicó: de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta, sobrecarregada de uma pérola, tudo de prata; timbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.

A diocese de Caicó traz de azul com uma cruz veirada de vermelho e prata, carregada de uma concha aberta, sobrecarregada de uma pérola, tudo de pratatimbre: mitra; sob o escudo, uma cruz processional e um báculo passados em aspa.

O último brasão desta coleção é mais um cujo estilo deixa ver a autoria ou do Ir. Paulo Lachenmayer ou do seu passavante, Víctor Hugo Carneiro Lopes. Probabilíssimo é que o Ir. Paulo tenha inventado a concha aberta com uma pérola enquanto símbolo de Sant'Ana. A minha hipótese é que o fez ao criar o brasão da arquidiocese de Feira de Santana. Com efeito, o atributo icônico de Sant'Ana é um códice ou volume aberto, que mostra à Menina Maria como se lhe ensinasse a lição. Porém um livro não basta para discernir certo santo ou santa na heráldica, daí a necessidade de outra figura, uma que propiciasse uma leitura unívoca. Com a engenhosidade que o distinguia, explica-nos o próprio Ir. Paulo na ficha do dito brasão:

Brasão de Armas da Diocese de Feira de Santana. Escudo: De prata, uma cruz, de vermelho, carregada de uma concha, com uma pérola, ao natural, e cantonada de 16 pegadas de boi de preto. Insígnias: Mitra, cruz processional e báculo. Comentário: A cidade de Feira, sede do novo Bispado, tem como Padroeira Sant'Ana, que com o seu sofrimento cooperou na redenção do mundo. Feira  feira do gado  (pegadas de boi); de Sant'Ana  padroeira  (concha), que nos deu Maria Santíssima (pérola), Mãe do Redentor (cruz). Assim como a pérola tem sua origem em meio ao sofrimento, do mesmo modo Sant'Ana gerou a Mãe de Deus, depois da humilhação de uma prolongada esterilidade. Devemos, com o exemplo e a proteção de Sant'Ana, ornar nossa coroa de glória com pérolas formadas pelos sofrimentos da vida. Salvador, 27 de novembro de 1962. Ir. Paulo, O.S.B.

Tal como no comentário ao brasão da arquidiocese de Natal, é preciso recorrer ao Protoevangelho de Tiago para conhecer a história de Sant'Ana. Segundo essa fonte, Joaquim e Ana eram um casal maduro, desafortunado pela esterilidade. De estirpe sacerdotal, Joaquim decidiu, após um vexame no templo, fazer penitência no deserto, enquanto Ana se entregava à oração, crente de ter enviuvado. Eis que lhe apareceu o Anjo do Senhor, anunciando que a sua prece fora atendida: "concipies et paries et celebrabitur nomen tuum in toto mundo", conforme a tradução latina de Postel e edição de Bibliander, que citei no dito comentário, ou seja, "conceberás, darás à luz e o teu nome será celebrado em todo o mundo". Portanto, assim como a ostra gera a pérola após ser ferida por um grão de areia, Sant'Ana concebeu e deu à luz sua especiosíssima Filha em meio ao sofrimento da infertilidade.

O brasão diocesano de Caicó contém um elemento destacável: o veirado. Lamentavelmente, as peles são raras na armaria nacional. Esse exemplo mostra não só a beleza delas, mas a utilidade em contornar limitações impostas pela regra de iluminura. Ora, sendo a prata o esmalte mais natural para iluminar a concha com a pérola, a cruz que a carrega teria de ser iluminada de cor; por conseguinte, o campo, carregado dessa cruz, teria de ser iluminado de metal. Como as peles podem combinar-se indistintamente com os metais e as cores, rompem essa cadeia de consequências: graças ao veirado da cruz, o campo é iluminado de azul e a concha com a pérola de prata sem incorrer em erro algum.

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