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15/05/22

A POMPA FÚNEBRE DE CARLOS V: O REI E OS CAVALEIROS DO TOSÃO DE OURO

O Tosão de Ouro está entre as ordens de cavalaria em vigência mais antigas e prestigiosas, embora não se saiba bem ao que se propõe na atualidade.

Após o exuberante desfile de brasões, reproduzidos sobre bandeiras, cotas, gualdrapas e escudos, aparece, finalmente, na seção entre a prancha n.º 29 e n.º 32, o rei, chefe das honras ("chief du deuil"), com os cavaleiros do Tosão de Ouro e os oficiais dessa ordem.

Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Mais precisamente, abriam essa parte do cortejo os mordomos de Filipe II: adiante Pedro Dávila y Zúñiga, marquês de Las Navas, e Pedro de Guzmán, conde de Olivares, e atrás Fernando Álvarez de Toledo, duque de Alba e mordomo-mor. Cada um caminhava apoiando uma grande vara.

Logo à frente do monarca, ia Antoine de Beaulaincourt, senhor de Bellenville, rei de armas Tosão de Ouro e presidente do cerimonial. Vestia um tabardo armoriado com as armas imperiais, levava a sua potence e empunhava um bastão. Filipe II ia coberto por um capuz e um manto tão longo que o sustinham à sua direita o duque Henrique de Brunswick, à esquerda Luis Cristóbal Ponce de León, duque de Arcos, e atrás Rui Gomes da Silva, conde de Melito e primeiro sumilher de corps.

Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).
Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da BnF).

Seguiam-se os cavaleiros do Tosão de Ouro: primeiro o duque Manuel Filiberto da Saboia, só e encapuzado, por ser príncipe do sangue (era primo do rei, ambos filhos de infantas portuguesas). Depois, aos pares: Jean de Hénin, conde de Boussu, e o conde Lamoral de Egmont; Jean de Ligne, conde de Arenberg, e Jean de Lannoy, senhor de Molembais; Philippe de Croÿ, duque de Aerschot, e Charles de Berlaymont; Jean de Glymes, marquês de Berghes, e Jean de Montmorency, senhor de Courrières; o conde João da Frísia Oriental, e Antonio Doria, marquês de Santo Stefano.

Enfim, atrás dos cavaleiros iam os oficiais da ordem: Pierre Boisot, tesoureiro; Philippe Nigri, chanceler; Nicolas Nicolaï, escrivão.

Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 29 e n.º 30 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Por que a Casa Real toda andava à frente do rei e os cavaleiros iam atrás? Porque o 12.º capítulo da ordem (1473) assim o estabeleceu, precisamente. Ela fora fundada por Filipe o Bom, duque da Borgonha, em 1430. O preâmbulo dos seus estatutos expõe claramente as causas, a natureza e os fins:

Philippe, par la grâce de Dieu Duc de Bourgogne, de Lothier, de Brabant et de Limbourg, Comte de Flandres, d'Artois, de Bourgogne Palatin, de Hainaut, de Hollande, de Zélande et de Namur, Marquis du Saint-Empire, Seigneur de Frise, de Salins et de Malines. Savoir faisons à tous présents et à venir que, pour la très grande et parfaite amour qu'avons au noble estat et ordre de chevalerie, dont de très ardente et singulière affection désirons l'honneur et accroissement, parquoi la vraie foi catholique, l'estat de nostre mère Sainte église et la tranquillité et prospérité de la chose publique soient, comme estre peuvent, défendues, gardées et maintenues, Nous, à la gloire et louange du Toutpuissant, nostre créateur et rédempteur, en révérence de sa glorieuse Vierge Mère et à l'honneur de Monseigneur Saint Andrieu, glorieux apostre et martyr, à l'exaltation de la foi et de Sainte église et excitation des vertus et bonnes mœurs, le 10.e jour du mois de janvier l'an de nostre Seigneur 1429, qui fut le jour de la solennisation du mariage de Nous et nostre très chère et très aimée compagne, Elisabeth, en nostre ville de Bruges, avons pris, créé et ordonné et par ces présentes prenons, créons et ordonnons un ordre et fraternité de chevalerie ou amiable compagnie de certain nombre de chevaliers, que voulons estre appelée l'ordre de la Toison d'or. (1)

O nome foi inspirado pelo mito grego do velocino de ouro: a pele do carneiro Crisomalo, sacrificado por Frixo depois de tê-lo montado para fugir de Atamante, seu pai, que ia sacrificá-lo por uma artimanha de Ino, sua madrasta. Presenteado ao rei Eetes da Cólquide, Pélias o exigiu a Jasão, seu sobrinho, como resgate do trono que usurpara. Para tanto, Argos, filho de Frixo construiu, sob a guia de Atena, o navio que levou o seu nome: Argo. Graças à bravura dos seus companheiros — os argonautas  e a magia de Medeia, filha de Eetes, Jasão obteve o velocino. À luz da fundação da ordem, é fácil entender o que o mito evocava: como o herói antigo, o duque Filipe alistava uma companhia de paladinos para empreender uma demanda épica além-mar, a própria cruzada.

Contudo, a evocação de um mito pagão não agradou à igreja, ainda que plenamente de acordo com o gosto do momento, de modo que Jasão logo deu lugar a Gedeão, o forte que Deus escolheu para vencer os madianitas e, hesitante, Lhe pediu um sinal de confirmação, estendendo um velo sobre a eira, que primeiro ficou empapado de orvalho enquanto o chão estava seco e depois ficou enxuto enquanto o chão estava molhado (Juízes, 6, 36-40).

Com relação à insígnia, um carneiro abatido pende de um colar de fuzis que acendem pederneiras faiscantes. À sua vez, esses fuzis encadeiam-se à semelhança de letras bês (de Bourgogne), tudo como os próprios estatutos dispõem (capítulo III):

Item, pour avoir connoissance dudit ordre et des chevaliers qui en seront, Nous, pour une fois, donnerons à chascun des chevaliers d'icelui ordre un collier d'or, fait à nostre devise, c'est à savoir, par pièces à façon de fusils, touchants à pierres, dont partent estincelles ardentes, et au bout d'icelui collier, pendant la semblance d'une toison d'or. (2)

Como eu disse na postagem de 03/05, o fuzil e a pederneira faiscante eram o corpo da empresa de Filipe o Bom, quem também cedeu a alma dela à ordem: Ante ferit quam micet ('Fere antes de acender'). No colar do rei de armas, as pederneiras pendiam de duas fileiras de placas, engatadas por dobradiças, as quais ostentavam as armas e a empresa de Carlos V e os brasões dos cavaleiros: a chamada potence.

Embora a ascensão e expansão dos otomanos tenham alimentado o ideal cruzado, como razoei na mesma postagem, a verdade é que no começo do século XV o tempo das cruzadas tinha passado. Mais que isso: a própria cavalaria começava a assumir a sua forma moderna, isto é, o código de conduta de um estamento nobiliário cada vez menos guerreiro e mais cortesão. Efetivamente, as ordens que tinham surgido da luta contra o Islã, tanto na Terra Santa como na Espanha, combinavam bellatores e oratores, já que os seus membros professavam votos e obedeciam a certa regra, de modo que tais ordens eram igualmente militares e religiosas. Em contrapartida, as ordens cavalheirescas eram laicas, portanto o juramento de lealdade aos seus soberanos era o que unia os seus membros. Isso pareceu especialmente estratégico ao duque borguinhão, que possuía muitos estados, dispersos sob a suserania ou do imperador ou do rei francês.

Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).
Pranchas n.º 31 e n.º 32 de La magnifique et sumptueuse pompe funèbre... (exemplar da Bibliothèque municipale de Besançon).

Não obstante, longe de ser uma inovação, a fundação de ordens de cavalaria vinha-se desenvolvendo havia mais de cem anos e nem todas as iniciativas obtinham sucesso. Para garantir, então, o prestígio e a perenidade, Filipe o Bom estatuiu, à semelhança da Ordem da Jarreteira, um número fechado de cavaleiros e que estes sempre trouxessem o colar e não aceitassem tomar parte de outra ordem.

Com o tempo, abrandaram-se essas disposições: o terceiro capítulo (1433) aumentou o número de cavaleiros de 24 para 30 e o 18.º (1519), para 51; o quinto (1436) permitiu o ingresso de príncipes que tivessem as suas próprias ordens e 12.º (1473), de qualquer príncipe, independentemente do vínculo com outra ordem; também o 18.º deu aos cavaleiros a opção de trazer a insígnia pendurada por uma fita vermelha ou corrente de ouro em vez do pesado colar. Em dezembro de 1558, quando se celebrou a pompa fúnebre de Carlos V, a Ordem do Tosão de Ouro tinhaalém do soberano, 41 cavaleiros viventes:

130. O imperador Fernando I;
164. o rei Cristiano II da Dinamarca, então deposto e prisioneiro;
171. Pedro Fernández de Velasco, duque de Frías;
174. Beltrán de la Cueva, duque de Albuquerque;
175. Andrea Doria, príncipe de Melfi;
182. Jean de Hénin, conde de Boussu;
192. o arquiduque Maximiliano da Áustria, primogênito do imperador Fernando I;
193. Íñigo López de Mendoza, duque do Infantado;
194. Fernando Álvarez de Toledo, duque de Alba;
195. Cosme de Médici, duque de Florença;
196. o duque Alberto da Baviera;
197. o duque Manuel Filiberto da Saboia;
198. Otávio Farnésio, duque de Parma;
200. o conde Frederico de Fürstenberg;
202. Joachim de Rye;
204. o conde Lamoral de Egmont;
205. Claude de Vergy, conde de Gruères;
207. Maximiliano de Borgonha, marquês de Veere;
209. o conde Pedro Ernesto de Mansfeld;
210. Jean de Ligne, conde de Arenberg;
212. Jean de Lannoy, senhor de Molembais;
213. Pedro Fernández de Córdoba, conde de Feria;
214. o duque Henrique de Brunswick;
215. o arquiduque Fernando da Áustria, filho segundo do imperador Fernando I;
216. Philippe de Croÿ, duque de Aerschot;
217. Gonzalo Fernández de Córdoba, duque de Sessa;
218. o príncipe Carlos, primogênito do rei Filipe II;
219. Luis Enríquez de Cabrera, duque de Medina de Rioseco;
220. Alfonso de Aragón y Portugal, duque de Segorbe;
221. Charles de Berlaymont;
222. Philippe de Stavele, senhor de Chaumont;
223. Charles de Brimeu, conde de Meghem;
224. Philippe de Montmorency-Nivelle, conde de Horn;
225. Jean de Glymes, marquês de Berghes;
226. o príncipe Guilherme de Orange;
227. Jean de Montmorency, senhor de Courrières;
228. o conde João da Frísia Oriental;
229. Wratislaw von Pernstein;
230. Alfonso de Dávalos de Aquino, marquês de Pescara;
231. Antonio Doria, marquês de Santo Stefano;
232. Sforza Sforza, conde de Santa Fiora.

Apesar do abrandamento, a ordem cumpriu os seus fins estatutários até 1559, quando se celebrou o 23.º capítulo e derradeiro. Desde então, começou, porém, a se descaracterizar: em 1578, o papa Gregório XIII dispensou a eleição capitular para a admissão de cavaleiros novos, a qual, desde então, coube inteiramente ao soberano; em 1773, Gregório XIV derrogou o impedimento de se pertencer a outra ordem; em 1817, Pio VII permitiu a investidura de não católicos como cavaleiros supranumerários; de 1833 a 1868, a chefia foi exercida por uma mulher, Isabel II da Espanha (3); em 1847, o Real Decreto de 26 de julho situou o Tosão de Ouro entre "[l]as órdenes reales de España, en la esfera civil" e suprimiu a condição e as provas de nobreza para todas; em 1870, Francisco Serrano, duque da Torre e regente do reino após a queda da rainha, outorgou o Tosão ao sultão otomano Abdulaziz, escancarando que a ordem perdera todos os seus propósitos originários.

Hoje em dia, o Tosão de Ouro é uma ordem anômala. Na verdade, duas ordens, porque malgrado todos os tratados de paz que se seguiram à Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1713), tanto o rei Filipe V como o imperador Carlos VI se intitularam soberanos e assim ficou: de um lado, o Tosão espanhol, uma ordem que se tornou da Coroa; do outro, o Tosão austríaco, uma ordem que permaneceu dinástica, até mesmo sob a República, que reconheceu, ainda, à Casa de Habsburgo-Lorena a posse do seu tesouro, transferido de Bruxelas para Viena quando os franceses invadiram os Países Baixos em 1794. Seja como for, nenhuma nunca atualizou os estatutos, de modo que não se sabe ao certo a que se propõem na contemporaneidade.

Notas:
(1) "Filipe, pela graça de Deus Duque da Borgonha, da Lotaríngia, de Brabante e de Limburgo, Conde de Flandres, de Artois, da Borgonha Palatino, de Hainaut, da Holanda, da Zelândia e de Namur, Marquês do Sacro Império, Senhor da Frísia, de Salins e de Mechelen. Saber fazemos a todos os presentes e por virem que, pelo máximo e perfeito amor que temos ao nobre estado e ordem de cavalaria, cuja honra e acrescentamento com ardentíssima e singular afeição desejamos, para que a verdadeira fé católica, o estado da nossa mãe Santa Igreja e a tranquilidade e prosperidade da coisa pública sejam, como puderem, defendidas, guardadas e mantidas, Nós, para a glória e louvor do Todo-Poderoso, nosso criador e redentor, em reverência da sua gloriosa Virgem Mãe e para a honra do Senhor Santo André, glorioso apóstolo e mártir, para a exaltação da fé e da Santa Igreja e excitação das virtudes e bons costumes, aos 10 dias do mês de janeiro do ano de Nosso Senhor de 1429, que foi o dia da solenização do casamento de Nós e nossa caríssima e muito amada companheira, Isabel, em nossa cidade de Bruges, tomámos, criámos e ordenámos e por estas presentes tomamos, criamos e ordenamos uma ordem e fraternidade de cavalaria ou amigável companhia de certo número de cavaleiros, que queremos seja chamada a Ordem do Tosão de Ouro." (tradução minha)
(2) "Para ter conhecimento da dita ordem e dos cavaleiros que serão dela, Nós, por uma vez, daremos a cada um dos cavaleiros dessa ordem um colar de ouro, feito com a nossa empresa, a saber, por peças à feição de fuzis, encostando em pedras, das quais saem centelhas ardentes, e na ponta desse colar, pendente a imagem de um tosão de ouro." (tradução minha)
(3) Em contraposição à duquesa Maria da Borgonha, que teve de ceder interinamente a chefia da ordem ao arquiduque Maximiliano da Áustria, seu marido, até que seu filho Filipe atingisse a maioridade.

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