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08/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL HOLANDÊS: O ORDENAMENTO

Ao contrário do que uma busca na Internet faz parecer, não se conhecem os ordenamentos dos brasões do Brasil holandês, especialmente os esmaltes.

Depois de abordar a estrutura administrativa do domínio holandês e analisar a quais instâncias se concederam brasões, os obstáculos ao estudo desta matéria não acabaram. Na verdade, agora se opõe o maior: não se conhecem os ordenamentos heráldicos desses emblemas. Convém lembrar que as fontes primárias escritas se restringem às duas que citei na postagem anterior. Considerando que uma é um relatório na forma de carta e a outra, uma crônica, é natural que os seus autores não tenham descrito esses brasões em linguagem heráldica.

Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).
Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (imagem disponível na Biblioteca Nacional Digital).

Em geral, quando não se acha brasonamento, é preciso recorrer às reproduções do brasão. Com efeito, as duas fontes primárias escritas são, ademais, visuais, já que contêm imagens. A carta do governo colonial ao colégio gestor da Companhia das Índias Ocidentais (WIC) menciona que ia acompanhada por desenhos dos selos para serem lavrados em prata. Alfredo de Carvalho descobriu cópias desses desenhos numa coleção de gravuras de medalhas que pertencera ao historiador Gerard Schaep (1599-1654) e atribui a autoria delas a certo H. Breckenveld. Já a Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu, é ilustrada pelas paisagens de Frans Post (1612-80) e pelos mapas de Georg Markgraf (1610-44), gravados por Johan van Brosterhuysen (c. 1596-1650) e Salomon Savery (1594-1683). Graças a essas imagens, sabemos quais figuras carregavam os escudos dados às câmaras de Igarassu, Sirinhaém, Porto Calvo e Alagoa do Sul, não descritos nos textos. Contudo, nenhum desses artistas usou o sistema de hachuras, que assinala os esmaltes.

Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da Colección Patricia Phelps de Cisneros (imagem disponível no portal do New Britain Museum of American Art).
Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da Colección Patricia Phelps de Cisneros (imagem disponível no portal do New Britain Museum of American Art).

Por sorte, alguns raríssimos exemplares da obra de Barleu foram coloridos. Na Internet, achei notícias sobre quatro: um se encontra na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, foi digitalizado e está disponível online. No entanto, a tecnologia da digitalização parece estar obsoleta, pois está apresentando vários defeitos de visualização. Outro faz parte da Colección Patricia Phelps de Cisneros. Não há digitalização disponível na Internet, mas se veem algumas das suas ilustrações, inclusive o frontispício, no portal do New Britain Museum of American Art, por ocasião da exposição Vistas del Sur. Um terceiro se encontra na Oliveira Lima Library, em Washington, pertencente à Catholic University of America, e também não está disponível na Internet, mas a instituição publicou uma imagem do frontispício no seu perfil no Facebook. O quarto faz parte da SP Lohia Collection; dele algumas poucas páginas veem-se no portal da coleção.

Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da Oliveira Lima Library (imagem disponível no perfil da instituição no Facebook).
Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da Oliveira Lima Library (imagem disponível no perfil da instituição no Facebook).

Ainda assim, os esmaltes dos brasões nesses exemplares não coincidem. Isso indica que foram coloridos arbitrariamente, segundo o gosto de cada artista. Entretanto, os esmaltes atribuídos no exemplar da Biblioteca Nacional tornaram-se quase canônicos por terem sido copiados por José Wasth Rodrigues nas suas reproduções para Brasões e bandeiras do Brasil, de Clóvis Ribeiro (1933). Além de ser o exemplar mais acessível aos estudiosos brasileiros, o fato de trazer combinações corretas de esmaltes pode ter contribuído com essa consideração.

Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da SP Lohia Collection (imagem disponível no portal da coleção).
Frontispício da Rerum per octennium in Brasilia, de Gaspar Barleu (1647), no exemplar da SP Lohia Collection (imagem disponível no portal da coleção).

Enfim, cabe observar que tanto as gravuras de H. Breckenveld como os desenhos de Frans Post deixam ver plenamente o gosto barroco. Com efeito, os escudos têm formas irregulares e retorcidas e os ornamentos externos são exuberantes: troféus, ramos e frutos variados, destacando-se as laranjas, alusivas à Casa de Orange-Nassau, além dos coronéis a que referi na postagem anterior.

A propósito, como interpretar esses coronéis? Cabe lembrar que eles marcam os títulos nobiliários, daí que a cada um corresponda certa forma. No entanto, o Brasil holandês não era um feudo para que se justificassem. Não era nem mesmo um território sob a soberania de um monarca, já que as Províncias Unidas não eram uma monarquia. O raciocínio que presidiu à sua constituição é que, ao abjurarem Filipe de Habsburgo em 1581, as dignidades monárquicas (duque de Gueldres, conde da Holanda e da Zelândia, senhor da Frísia, de Utrecht, de Overijssel e de Groninga) ficaram vagas. Acabaram sendo assumidas pelos "estados" (staten 'estamentos') dos senhorios, os quais, tendo-se federado como províncias livres, delegaram parte do seu poder nos Estados Gerais (Staten-Generaal). O príncipe de Orange e outros membros da Casa de Nassau não eram soberanos, mas stadhouders 'lugar-tenentes' (subentenda-se: dos antigos soberanos). Comandavam as forças armadas e desempenhavam certas funções executivas.

Não obstante, no plano heráldico os Estados Gerais timbraram o seu escudo com uma coroa real fechada por quatro diademas, aparentes três (como então por toda a parte se usava), ao menos desde 1609, quando assinaram a Trégua dos Doze Anos com a Coroa espanhola, como o atesta a medalha comemorativa que mandaram fazer na ocasião. Os próprios escudos das províncias também eram timbrados com coronéis semelhantes à coroa real antiga. Trata-se de uma ressignificação: não marcavam mais certos títulos, mas a própria soberania que a dignidade régia supunha. Noutras palavras, é como se dissessem que, sem ser reis, nos Países Baixos Unidos (Verenigde Nederlanden, Belgium Fœderatum) eram os Estados Gerais e os estados provinciais que reinavam.

Na armaria do Brasil holandês, um coronel timbra os escudos do Supremo Governo, do Conselho de Justiça e das câmaras de Pernambuco (de Olinda, depois de Maurícia), de Itamaracá, da Paraíba e do Rio Grande. Nas gravuras de H. Breckenveld, esse coronel tem quatro florões, aparentes três, alternados com quatro trevos, aparentes dois. Os desenhos de Frans Post são um pouco mais caprichosos, mas também se veem três florões. Na própria metrópole, os coronéis das províncias variavam bastante. A minha leitura é que todos significam o mesmo: o titular do brasão possuía uma parcela da soberania cujo depositário supremo eram os Estados Gerais.

Nas próximas postagens, ao abordar um a um os brasões do Brasil holandês, procurarei dar os esmaltes conforme os frontispícios de cada um desses exemplares da Rerum per octennium in Brasilia..., salvo o da SP Lohia Collection, porque nele são patentes a arbitrariedade e incompletude do colorimento.

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