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13/08/21

A VERSATILIDADE DA HERÁLDICA

A heráldica é um sistema semiótico e, como tal, atendeu a variados interesses ao longo da sua história, como hoje pode responder a legítimos anseios.

O caso do brasão do País Basco, que abordei na postagem de 07/08, é curioso não só pela "logotipação" bastante fiel ao ordenamento, mas também pela querela de que foi objeto, em razão do uso das armas de Navarra, embora essa comunidade não tenha aderido ao projeto de uma autonomia basca unificada. Soa estranho, mas é um caso análogo às armas de pretensão.

Armas de pretensão identificam um domínio que o titular do brasão não possui. O próprio rei espanhol trazia várias: em 1931, quando Afonso XIII abdicou, as armas reais compunham-se de dezesseis partições, das quais apenas cinco, as mesmas das armas nacionais, referiam ao território contemporâneo da Espanha. Embora pareça mera vaidade (e em parte o era), essas pretensões desempenhavam certas funções na sociedade do Antigo Regime: quando havia uma crise dinástica, serviam à reivindicação de direitos sucessórios, além de rememorar antigas alianças.

O ponto é que um sistema semiótico, como a heráldica, está sujeito às correntes de pensamento que atravessam a sociedade e alteram crenças e práticas de tempos em tempos. Assim, em 7 de março, a prefeitura do Recife anunciou o seguinte nas suas redes sociais:

Se temos uma cidade feita por mais mulheres do que homens, se temos mais servidoras no município, a primeira vice-prefeita da história dessa capital e metade das secretarias da Prefeitura lideradas, pela primeira vez, por mulheres, por que isso não está representado numa marca do Recife? Bem, não estava. A partir de hoje entra uma leoa. É representatividade e representação. Paridade e igualdade de oportunidades. É ponto de partida, e não de chegada. É uma cidade, uma atitude. É Recife. De todas e todos.

Desde então, adotou uma identidade visual nova. Eis a marca preferencial:

Marca preferencial da prefeitura do Recife.
Marca da prefeitura do Recife.

O anúncio acaba com uma ressalva: "O brasão oficial da cidade, escolhido e instituído por lei na década de 1930, segue o mesmo". Mais precisamente 1931. Foi criado pelo jornalista Mário Melo e pelo pintor Baltasar da Câmara, que venceram o concurso aberto pela prefeitura. Clóvis Ribeiro, em Brasões e bandeiras do Brasil (1933), cita a descrição e o comentário dos autores:

Escudo cortado em faixa. A primeira ocupada por dois retângulos irregulares, o superior e maior de blau com o sol superado pelo arco-íris, carregado este de uma estrela; o segundo de prata com uma cruz latina sanguínea. Na segunda, de prata, um recife de negro com uma torre do mesmo e, na extremidade, um farol sanguinho, tudo batido por ondas. Timbre: uma coroa mural de sete ameias de oiro; tenentes: dois leões neerlandeses de oiro e coroados, que se apoiam na divisa Ut luceat omnibus (1). As datas principais do Recife.
No projeto está figurado o porto do Recife ao natural: a muralha que deu nome à povoação, o forte que resistiu à invasão holandesa e ainda se conserva em ruínas e o farol que ilumina os navegantes, emblemas que igualmente ornam o escudo do estado.
Também aí se rende preito aos idealistas republicanos de 1817, pois foi este o feito político de maior significação do Recife: a bandeira azul-branca com a cruz latina, em homenagem aos colonizadores cristãos; o arco-íris, símbolo da aliança de todos os elementos; o sol que ilumina Pernambuco antes de qualquer ponto da América e a estrela, que significava a nossa província na idealizada união republicana.
A coroa mural é o símbolo heráldico das municipalidades. Com sete ameias de oiro por tratar-se de cidade de primeira categoria.
Os leões são tradicionais em Pernambuco: figuravam nas armas do primeiro donatário da capitania e nas de Maurício de Nassau, o fundador de nossa capital. Os que servem de suporte do nosso projeto são os neerlandeses coroados, que se veem nas armas da Holanda como tenentes, que figuravam num dos quartéis das armas de Dilemburgo, pátria de Maurício de Nassau, e também nas armas do fundador de Mauritsstad.
A divisa do escudo é a mesma do antigo desta capital.
Quanto às datas: 1637 — início do governo de Maurício de Nassau, de que proveio a fundação de Mauritsstad, ou Mauritiópolis, ou cidade Maurícia; 1710 — a elevação a vila, combatida pelos rivais olindenses; 1823 — a categoria de cidade; 1827 — a elevação, de direito, a capital, que o era de fato.
O farol é sanguinho e não de sua cor natural — branca — porque branco em heráldica é metal (prata) e num campo de prata não se pode pôr uma figura do mesmo metal; farol é luz e luz tem a representação vermelha. De vermelho é uma das projeções do nosso farol.

Nem me choca a leoa da marca nem o "blau" do projeto; choca-me que a única reprodução correta disponível na Internet seja precisamente a que ilustra esse livro. Todas as demais, até mesmo a que consta no portal da prefeitura e é usada pela câmara municipal, trazem o segundo cortado iluminado de azul-celeste, talvez com o intuito de contrastá-lo com o primeiro e dar-lhe uma aparência mais natural.

Brasão do Recife (desenho de José Wasth Rodrigues, publicado em Brasões e bandeiras do Brasil, de Clóvis Ribeiro, 1933).
Brasão do Recife (desenho de José Wasth Rodrigues, publicado em Brasões e bandeiras do Brasil, de Clóvis Ribeiro, 1933).

Com efeito, o Recife, originariamente uma precária aldeia de marujos e estivadores, progrediu graças ao porto natural formado pelo estuário do Capibaribe e pelo recife que lhe dá nome. Portanto, é irrepreensível que se tenha escolhido a entrada desse porto para representar a cidade no brasão, perfeitamente estilizada no projeto. O problema é que o farol e o Forte do Picão não assentam bem num escudo convencional, de sete módulos por seis, tanto que no emblema de Pernambuco a mesma paisagem figura de forma muito mais naturalista. Daí que se tenha cortado o campo e preenchido o primeiro com a bandeira estadual, o que não parece de boa heráldica. Por sorte, ela é brasonável, de modo que o todo eu descrevo assim:

Cortado, o primeiro de azul com um arco-íris de vermelho, ouro e verde entre uma estrela de ouro e uma sombra de sol do mesmo, alinhadas em pala, e firmado num contrachefe de prata, carregado de uma cruz alta de vermelho; o segundo de prata com um farol de vermelho à destra e um forte de negro à sinistra, assentes num recife do mesmo, firmado no flanco sinistro e batido por um mar ao natural. Timbre: coroa mural de quatro torres de ouro. Suportes: dois leopardos aleonados de ouro, coroados do mesmo. Divisa: Ut luceat omnibus. Datas: 1637, 1710, 1823 e 1827.

Voltando à questão da leoa, tendo a achar a mudança abusiva. Não pela causa, mas pela forma. Se a igualdade de gênero é um conceito relevante (opino que da maior relevância) nos nossos dias, não encontro o argumento que interditaria o seu reflexo nos símbolos comunitários, de todas e todos, especialmente quando não acarreta nenhuma desfiguração, como é o caso. Por outro lado, abrigar-se sob o subterfúgio de que o desenho integrado à identidade visual da prefeitura não é o brasão não me parece sustentável. Ironicamente, esse desenho é melhor do que o tradicional mencionado, o que, por si, o afasta do juízo de que consistiria numa marca baseada no brasão. No máximo, poder-se-ia objetar que se trata de uma versão em que se omitem a divisa e as datas. Ainda que muito mais dificultoso, o caminho mais apropriado é o legislativo, já aberto pela vereadora Cida Pedrosa, que apresentou um projeto de lei para tornar a mudança uma atitude do poder público, mais que de uma gestão. Na verdade, "dificultoso" é jeito de falar, pois sabemos que quando há vontade política, esse caminho é reto, plano e pavimentado.

Na primeira postagem desta série, afirmei que a imitação dos bons exemplos de integração de um brasão a um sistema de identidade visual demanda uma bagagem teórica que invariavelmente tem de abranger a heráldica. De fato, os manuais brasileiros de identidade visual ainda são rasos: abordam pouco mais que o próprio design. Ao mesmo tempo, que mais e mais pessoas jurídicas de direito público estejam sistematizando uma identidade visual a partir da heráldica já é um avanço significativo.

Nota:
(1) Significa 'Para que reluza para todos'.

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