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22/03/21

QUANTOS METAIS, CORES E FORROS HÁ NAS ARMAS E COMO SE DEVEM BRASONAR

A heráldica, especialmente a boa heráldica lusófona, faz-se com dois metais, cinco cores e duas peles.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le tiers chapitre devise quants métals, quantes couleurs et quantes pannes il y a en armes et comment on les doit blasonner.

En armes a seulement deux métals, c'est à savoir, or et argent, et cinq couleurs, c'est à savoir, gueules, qui est toute chose vermeille ; azur, qui est pers ; sable, qui est noir ; sinople, qui est vert ; et pourpre, qui est couleur composée et non simple, car qui meslera égale portion desdites couleurs ensemble, ce sera pourpre ; et deux pannes, c'est à savoir, hermines et vairs.

Et doit l'on blasonner en ceste forme : tel prince porte d'or ou d'azur ou d'hermines, et pareillement des autres, métal, couleur ou panne. Et combien que l'hermine soit d'argent et de sable et le vair, d'argent et azur, toutesfois l'on ne les nomme pas « hermines d'argent et de sable », ne « vair d'argent et d'azur », mais à un mot : tel porte d'hermines ou de vairs. Excepté quand l'hermine est d'autre métal et couleur que d'argent et de sable, et vair, d'autre couleur que d'argent et d'azur, ouquel cas l'on dit : « vair ou hermine d'or et de gueules », ou autres pareilles (1), comme par les figures ci-dessous contenues pourra clairement apparoir.

Or.
Or.

Argent.
Argent.

Gueules.
Gueules.

Azur.
Azur.

Sinople.
Sable.

Sinople.
Sinople.

Pourpre.
Pourpre.

Vair.
Vair.

Vairé d'or et de sinople.

O terceiro capítulo distingue quantos metais, quantas cores e quantos forros há nas armas e como se devem brasonar.

Nas armas há somente dois metais, a saber, ouro e prata; cinco cores, a saber, vermelho, que é qualquer coisa vermelha; azul, que é a cor azul; negro, que é a cor negra; verde, que é a cor verde; e púrpura, que é uma cor composta e não simples, pois quem misturar iguais porções das ditas cores, dará na púrpura; e dois forros, a saber, arminhos e veiros.

Deve-se brasonar desta maneira: tal príncipe traz de ouro, de azul ou de arminhos, e igualmente dos demais, seja metal, cor ou forro. E ainda que o arminho seja de prata e negro e os veiros, de prata e azul, não se denominam, todavia, "arminhos de prata e negro" nem "veiros de prata e azul", mas numa só sentença: fulano traz de arminhos ou de veiros. Exceto quando o arminho é de outro metal e cor, diferentes de prata e negro, e os veiros, de outra cor, diferente de prata e azul; nesse caso, diz-se: "veiros ou arminho de ouro e vermelho", ou outras semelhantes (1), como pelas figuras dispostas abaixo poderá claramente evidenciar-se.

Ouro.
Ouro.

Prata.
Prata.

Vermelho.
Vermelho.

Azul.
Azul.

Negro.
Negro.

Verde.
Verde.

Púrpura.
Púrpura.

Veiros.
Veiros.

Veirado de ouro e verde.
Veirado de ouro e verde.

Comentário:

"Gueules est toute chose vermeille" é uma dessas frases com que a gente topa ao ler a literatura técnica de outrora e dizem bem mais do que aparentam: o esmalte heráldico vermelho não é certo matiz de vermelho, seja vermelho-sangue, carmesim ou escarlate, mas um conceito que abrange tudo que se costuma considerar vermelho. Por conseguinte, na heráldica cada artista pode trabalhar com a sua própria paleta: o ouro pode ser realizado como um amarelo mais claro ou mais escuro, mais fosco ou mais brilhante; a prata, como branco ou cinza, etc. Eu, que não sou artista, prefiro adotar as convenções do Taller de Heráldica y Vexilología da Wikipédia em espanhol, exceto para a púrpura, que me parece escura demais. Daí que não se admita mais de um tom do mesmo esmalte. Ora, tendo escolhido certo azul para realizar o esmalte azul, não pode o artista iluminar tal figura de azul-marinho aqui e tal outra de azul-celeste ali.

Outro aspecto que se observa nessa frase é a nomenclatura dos esmaltes: "gueules, qui est toute chose vermeille ; azur, qui est pers ; sable, qui est noir ; sinople, qui est vert". Sem dúvida, que essas quatro cores tenham recebido nomes técnicos contribui com a concepção que expliquei acima. Repare, prezado leitor, que ao traduzir tive de manobrar as palavras em decorrência da falta dessa nomenclatura em português. Com efeito, convém lembrar que a heráldica surgiu em estreita relação com a produção têxtil, como expus na postagem de 10/02. Para o consumidor leigo, é indiferente que a cor rósea de um tecido se denomine rosa-chá ou rosa-choque: ele escolhe um tom ou outro por razões pessoais ou outras. Mas para o produtor a distinção é conveniente e necessária, afinal são produtos que podem ter custos e valores diferentes. Assim:

  • Gueules é o plural lexicalizado de gueule, do latim gula, ou seja, 'goela' (a forma portuguesa vem de um diminutivo: *gulella), devido ao apreço pela pele da garganta de certos animais, sobretudo da marta, na pelaria antiga, segundo o Trésor de la Langue Française informatisé (TLFi).
  • Azur era o nome dessa cor em todas as línguas românicas ocidentais (azul em português e espanhol, azzurro em italiano), tanto que para evitar a redundância de dizer "azur, qui est azur", o autor emprega a palavra pers, do latim persus, em virtude da procedência persa ou oriental de algum tecido azul. Precisamente, azur vem do persa لاجورد (lâjvard), pelo árabe لازورد (lāzuward), e designa o lápis-lazúli, um mineral de cor azul. O l inicial caiu porque foi entendido como artigo, ou seja, como se lazur fosse l'azur. Em francês, foi possível convertê-lo em termo técnico da armaria porque outra palavra se tornou o nome comum da cor: bleu, do frâncico *blāu.
  • Sable era a pele da zibelina, um mustelídeo nativo das regiões setentrionais da Eurásia, daí que a palavra tenha sido provavelmente tomada do eslavo oriental (em russo соболь (sobol)) e tenha chegado ao ocidente europeu através do baixo-alemão/holandês sabel.
  • Sinople foi o último tecnicismo incorporado na nomenclatura heráldica das cores, pois até o fim do século XIV se dizia, efetivamente, vert. Mais que isso: é um caso intrigante, pois o vocábulo sinople vem do latim sinopis,sinopidis, e este do grego σινωπίς,σινωπίδος (sinōpís,sinōpídos), referia a uma argila encontrada na cidade de Sinope, na Paflagônia (hoje norte da Turquia), e era sinônimo de... vermelho! Acontece que a evolução da língua francesa tornou homófonas as palavras vert e vair, ou seja, verde e veiro(s): até hoje, tanto uma como a outra se pronunciam /vɛʁ/. É possível que isso tenha levado os arautos a promover a mudança do significado de sinople, empregando-o como o termo heráldico para a cor verde.

De forma integral, isto é, abrangendo os metais, essa nomenclatura só foi adotada na Grã-Bretanha: or, argent, gules, azure, sable, vert e purpure. Inclusive, a preservação de vert reforça a hipótese da homofonia, que enunciei acima: como em inglês vert e vair soam diferentes, não havia por que importar a alteração da palavra sinople. De modo parcial, cingindo-se às cores, foi adotada nos Países Baixos, em Aragão e em Castela: em holandês keel, azuur, sabel, sinopel e purper; em catalão gules, atzur, sable, sinople e porpra; em espanhol gules, azur, sable, sinople e púrpura. No resto da Europa, usam-se os nomes vernáculos: em dinamarquês rødblå, sortgrøn purpur; em alemão Rot, Blau, Schwarz, Grün e Purpur; em italiano rosso, azzurro, nero, verde e porpora; em português vermelho, azul, negro, verde e púrpura.

Portanto, caro leitor, na nossa língua não se diz goles, blau, sable e sinople. Suspeito de que a primeira citação desses termos em português é a que se lê na Nobiliarquia portuguesa, de Antônio de Vilas Boas e Sampaio (1676):

Para a composição dos escudos no uso da armaria, servem somente os dous metais, de ouro e prata, e quatro cores naturais, correspondentes aos quatro elementos de que se formou o mundo. São estas a cor vermelha, que se chama goles e corresponde ao fogo; azul, que se diz blau e corresponde ao ar; verde, que se nomeia sable, corresponde à água; negra, chamada por outro nome, sinoble, e corresponde à terra.

Desconheço texto relativo à técnica do brasão em português anterior a essa obra, que é mais notável pelos seus erros do que pelos acertos, tanto que nesse trecho confunde sable e sinople, trocando um pelo outro. O ponto é: quando esses galicismos começaram a circular em Portugal, a heráldica portuguesa já vinha de uma andadura plurissecular, sempre empregando os nomes vernáculos das cores. Além disso, o fato de se ter ido buscar provavelmente no provençal blau uma palavra para o azul que parecesse francesa, mas fosse fácil de se dizer em português, em vez do convencional azur (esp. azur, cat. atzur, ingl. azure, hol. azuur), demonstra o caráter espúrio desses neologismos à luz do que foi consagrado no nosso idioma.

Outro aspecto interessante deste capítulo é a ordem em que os esmaltes são enunciados. Na postagem de 08/02, dei a frequência de cada um na armaria medieval, segundo Michel Pastoureau no Manuel d'héraldique: vermelho, 61%; prata, 48%; ouro, 42%; negro, 28%; azul, 23%; outros, 5%; verde, 2%. Abstraindo que na enunciação os metais antecedem as cores e considerando a progressiva difusão do azul, possivelmente a sequência ouro, prata, vermelho, azul, negro, verde e púrpura reflete não só uma hierarquia que começa pelo metal mais precioso, mas também a frequência de uso, o que, dada a falta de maiores recursos à época, é fascinante.

Enfim, na postagem de 06/02 resumi a história da púrpura e falei da estimação hesitante e ambígua que tem recebido. A explicação de que é obtida pela mistura das demais cores em porções iguais confirma o esquecimento em que a extração do pigmento do múrice caiu após a queda do Império Romano e a qualificação de cor composta condiz com o fato de ter sido tida ora entre os metais ora entre as cores em certas tradições heráldicas, inclusive na portuguesa.

A propósito, a heráldica portuguesa é muito estrita quanto ao rol dos esmaltes: nada de alaranjado, azul-celeste, marrom ou sanguíneo. Além da carnação, nome que se dá à cor das pessoas brancas (3), qualquer figura que não seja iluminada de esmalte deve ser brasonada como de sua cor ou ao natural. E nunca custa lembrar que se recomenda a máxima parcimônia no recurso a essa solução.

Notas:
(1) Atualmente, tanto em francês como em português usa-se o termo vairé/veirado para os veiros de metal e cor diferentes de prata e azul.
(2) O artista iluminou, na verdade, um veirado de azul e prata, pois nos veiros o campo é iluminado de prata e as campânulas, de azul.
(3) Na heráldica municipal portuguesa, costuma-se usar a locução de carnação negra sobretudo para designar o esmalte da cabeça de mouro. A mim parece uma expressão muito estranha, porque, via de regra, o esmalte de uma cabeça de mouro é negro, simplesmente.

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