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28/03/21

O NÚMERO ATÉ O QUAL SE DEVEM CONTAR TODAS AS COISAS QUE ESTÃO NAS ARMAS

Hoje, o limite de figuras repetidas é o bom senso, mas os efeitos de se procurar normalizar esse aspecto foi tal que mudou o sistema heráldico.


Do Tratado Prinsault (1444):

Le sixiesme chapitre démonstre jusques à quel nombre on doit nombrer toutes choses qui sont en armes et quand on doit dire sans nombre ou semé, comme s'ensuit.

Tourteaux, besants et cotices se nombrent jusques à huit. Losanges, fusées, eschequier se nombrent jusques à vingt-et-cinq. Bestes, oiseaux, fleurs, poissons et toutes autres choses qui sont en armes se nombrent jusques à seize. Et se elles passent lesdits nombres, on blasonne sans nombre ou semé, comme ès armes de Laval (1), où l'on dit « d'or à seize aigles d'azur » (2), et en celles de Pully (3), où l'on dit « d'or, semé d'aigles d'azur » ou « d'or à aigles d'azur sans nombre », ainsi que par les deux escus ci-après figurés appert.

D'or à seize aigles d'azur.
D'or à seize aigles d'azur. (4)

D'or semé d'aigles d'azur.
D'or semé d'aigles d'azur. (4)

O sexto capítulo demonstra o número até o qual se devem contar todas as coisas que estão nas armas e quando se deve dizer sem número ou semeado, como se segue.

As arruelas, os besantes e as coticas contam-se até oito. As lisonjas, os fusos e o xadrez contam-se até vinte e cinco. As bestas, os pássaros, as flores, os peixes e todas as outras coisas que estão nas armas contam-se até dezesseis. Se passam desses números, brasona-se sem número ou semeado, como nas armas de Laval (1), de que se diz "de ouro com dezesseis águias de azul" (2), e nas de Pully (3), de que se diz "de ouro, semeado de águias de azul" ou "de ouro com águias de azul sem número", como pelos dois escudos figurados a seguir se evidencia.

De ouro com dezesseis águias de azul.
De ouro com dezesseis águias de azul.

De ouro, semeado de águias de azul.
De ouro, semeado de águias de azul.

Comentário:

Afinal, cinco, dez, onze, quinze ou dezesseis besantes? Seis, sete, oito, nove, dez, doze, treze ou catorze castelos? Estes são os números que Anselmo Braamcamp Freire registra na sua Armaria portuguesa (1908) ao descrever a evolução das armas reais portuguesas. Semelhantemente, as palas das armas reais aragonesas variavam de três a seis e ainda concorriam com o palado, também de número variável de peças. Convém, pois, recuperar a referência a um estudo de Alberto Montaner Frutos, que citei na postagem de 19/01.

Com efeito, depois de uma cuidadosa análise, esse pesquisador conclui que no sistema clássico da heráldica a pluralização era similar ao número gramatical em certas línguas. Graças à minha formação linguística e atuação em filologia, sei que a oposição um / mais de um, ou seja, singular e plural, é muito comum nas línguas, talvez o mecanismo mais comum de número, mas não o único. Assim, há línguas que têm três números, pois além do singular e plural, distinguem o dual, isto é, um par de seres ou coisas, como o grego antigo e outras línguas indo-europeias, várias das antigas e poucas das modernas. Além desses três números, o árabe, por exemplo, possui um paucal, que exprime um conjunto pequeno, convencionalmente entre três e dez. Tudo isto pode ser ilustrado pela palavra árvore:

  • latim: arbor (singular) / arbores (plural);
  • grego antigo: δένδρον (déndron, singular) / δένδρω (déndrō, dual) / δένδρα (déndra, plural);
  • árabe: شجر (šajar, coletivo) / شجرة (šajara, singulativo) / شجرتان (šajaratān, dual) / شجرات (šajarāt, paucal) / أشجار (ʾašjār, plural).

Montaner Frutos menciona essas línguas no seu artigo, mas lhe escapa que as suas conclusões são estranhamente correlatas com o número gramatical nas línguas célticas britônicas. Tomando o bretão por exemplo, para referir a certos pares de partes dos seres vivos emprega-se um prefixo que funciona como um dual residual: lagad é um olho, daoulagad são dois olhos (do mesmo ser) e lagadoù são olhos. Ademais, alguns substantivos são plurais coletivos e deles deriva um singular, chamado singulativo, referente a uma unidade da coleção: gwez são árvores incontáveis (mais ou menos como um bosque), gwezenn é uma dessas árvores e gwezennoù são árvores, mais de duas e contáveis. Imaginando armas quaisquer com árvores, a comparação da abstração de Montaner Frutos com o bretão pode ser esquematizada assim:

Abstração
Bretão
Português
um
e wezenn
com uma árvore
dois
e ziv wezenn
com duas árvores
mais de dois, mas contáveis
gant gwezennoù
com árvores
incontáveis
hadet gant gwez
semeado de árvores

Mera coincidência? Não sei, mas o peso político do ducado da Bretanha e o peso cultural da matéria de Bretanha são incontestáveis, sem falar que, segundo alguns, o Joannes de Bado Aureo que escreveu o Tractatus de armis em 1395, um dos mais antigos depois do de Bártolo, era John Trevor/Ieuan Trefor, bispo de St Asaph/Llanelwy, no País de Gales, quem o teria traduzido para o seu idioma. Essa tradução é conhecida como Llyfr dysgread arfau. O galês é outra língua britônica.

Portanto, os besantes das armas reais portuguesas e as palas das aragonesas eram conceituados no número maior que dois, mas contável, análogo ao plural não coletivo das línguas britônicas. Como se podia reproduzir o brasão em objetos dos mais variados tamanhos, inclusive sem o escudo, ou melhor, como se a superfície do objeto fosse o campo, esse mecanismo permitia ao artista adequar a reprodução ao espaço disponível.

Contudo, o Tratado Prinsault demonstra que em meados do século XV a possibilidade do plural não fixo estava desaparecendo. Nas armas reais portuguesas, por exemplo, fixou-se que os besantes seriam cinco a partir da segunda dinastia, a de Avis, ou seja, desde 1385 (a fixação dos castelos em sete demorou mais: 1555, sob Dom João III). Efetivamente, o presente capítulo testemunha um momento de exagero normativo que hoje já não se aplica, se é que alguma vez se aplicou: não se conta nenhuma figura até certo número; esse limite fica a cargo do bom senso. Não obstante, dessa normalização resulta que a cada conjunto de figuras repetidas, de dois a seis, corresponde uma situação ordinária, que não é preciso brasonar. Na armaria portuguesa, essas situações são as seguintes:

  • duas figuras: alinham-se em faixa, ou seja, lado a lado;
  • três figuras: alinham-se duas no alto e uma no baixo, ou seja, como um triângulo invertido;
  • quatro figuras: alinham-se cantonadas, ou seja, duas no alto e duas no baixo;
  • cinco figuras: alinham-se em aspa, ou seja, duas no alto, uma no meio e duas no baixo; (5)
  • seis figuras: alinham-se duas no alto, duas no meio e duas no baixo (6).
  • nove figuras: alinham-se três no alto, três no meio e três no baixo.

Se a situação for diferente, é preciso brasoná-la, o que também se aplica aos conjuntos de sete, de oito e de dez em diante. Para tanto, suprimem-se as locuções no alto, no meio e no baixo. Por exemplo, sete figuras podem ser postas três, três, uma ou três, duas, duas.

Enfim, quanto ao semeado, distinguem-no dois caracteres: o número das figuras é indefinido; as figuras que estão nos extremos costumam ficar cortadas pelos bordos do escudo. Isso acontece porque o semeado consiste, de fato, numa repetição simétrica.

Notas:
(1) Na verdade, as armas da Casa de Montmorency é que são de ouro com uma cruz de vermelho, cantonada de dezesseis aleriões de azul. A Casa de Laval uniu-se à de Montmorency em 1264. Um alerião (alérion em francês) é uma aguieta sem bico nem pés.
(2) Quando há mais de uma águia, atualmente tanto em francês como em português se diz aiglette/aguieta.
(3) Não encontro nenhuma referência a essas armas na Internet.
(4) O artista desenhou aguietas abatidas em ambos os exemplos, de duas cabeças no primeiro.
(5) Daí que os besantes das armas de Portugal sejam conhecidos como quinas.
(6) Na armaria francesa, alinham-se três no alto, duas no meio e uma no baixo.

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