A heráldica opera com dois metais, cinco cores e duas peles, os chamados esmaltes. Qualquer outra cor é a natural de uma figura, e não se deve abusar.
Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:
(27) Qualiter autem colores dicantur nobiliores secundum se? Dico quod sicut lux est nobilissima, ejus contrarium dicuntur tenebræ et sic vilissimæ. Sic in coloribus secundum se, color albus est nobilior, quia magis appropinquat luci; color niger est infimus, quia magis appropinquat tenebris. Colores autem medii sunt nobiliores et minus nobiles secundum quod plus vel minus appropinquant albedini vel nigredini, et istud est de mente Aristotelis in libro De sensu et sensato.
(27) De que modo as cores se dizem mais nobres por si mesmas? Digo que assim como a luz é muito nobre, o seu contrário diz-se trevas e, por isso, são muito vis. Assim, quanto às cores por si mesmas, a cor branca é mais nobre, porque se aproxima mais à luz; a cor negra é a mais baixa, porque se aproxima mais às trevas. As cores médias são mais nobres e menos nobres segundo se aproximam mais ou menos à brancura ou à negrura. Isto é do pensamento de Aristóteles no livro Da sensação e do sensível.
Na seção anterior, Bártolo trata das cores dourada, vermelha (e, como tom desta, a purpúrea) e azul. Agora menciona a branca e a negra. Na mesma postagem, objetei que em heráldica não há pigmentos concretos, mas conceitos cromáticos, portanto cabe fazer a equivalência: às cores dourada e branca, os metais ouro e prata, depois o vermelho, o azul, o negro e a púrpura, sempre enunciados no masculino singular com a preposição de, como eu disse. Contudo, quem sabe quais são os esmaltes heráldicos terá sentido a falta de um: o verde.
De fato, o verde não só teve um ingresso tardio na heráldica, mas também um uso minoritário. Michel Pastoureau, a partir da terceira edição do seu Manuel d'héraldique (1997), revela que o vermelho é o esmalte mais frequente na armaria medieval (61%), seguido da prata (48%), do ouro (42%), do negro (28%), do azul (23%) e de outros (5%). A frequência do verde é menor do que a última: 2%. Observe, caro leitor, que esses números comprovam o quão exata é a observação do doutor de Sassoferrato: destaca o vermelho e o ouro na seção anterior do tratado pelo que representam; nesta seção ressalta a prata e o negro pela sua relação com a luz, bem ao gosto do futuro humanismo.
Os esmaltes. Em itálico, os seus nomes em francês. (1) |
Além disso, esses dados indicam que o sistema não saiu pronto de uma forja determinada, mas foi sendo construído progressiva e coletivamente. A propósito, uma das primeiras lições que a gente aprende em linguística diz respeito ao funcionamento do signo: ele constitui-se por oposição a outro. Por exemplo: /p/ e /b/ são fonemas em português porque pato é diferente de bato, ao contrário de [r] e [h], que são variantes de um mesmo fonema /R/, como em parto, onde o r pode soar vibrante ou aspirado, a depender do dialeto do português brasileiro. Similarmente, à medida que certas combinações de esmaltes foram sendo assumidas primeiro, a quem veio assumindo armas em seguida impuseram-se as combinações que o contrastavam no seu entorno. Assim, a frequência do azul aumentou e o sistema ficou completo com a incorporação das peles: o arminho e os veiros (2). Adiantei esse raciocínio na postagem de 27/01, ao comentar o contraste das armas reais portuguesas primitivas em relação às leonesas, castelhanas e aragonesas. Miguel Metelo de Seixas, em artigo de 2018, aplica-o à escolha das cores nacionais brasileiras. Antes disso, Michel Pastoureau, em artigo de 1993, chamou a atenção para a incomum combinação cromática do Portugal republicano.
Com efeito, já se derramou muita tinta para explicar a origem e o significado do nosso auriverde. Na escola, ensinaram-me que o verde representa as matas e o ouro/amarelo, as riquezas. Parece que essa justificação vem desde o próprio Pedro I, segundo o relato de Joaquim Norberto de Sousa Silva em artigo de 1890 (3). Outra versão corrente é que o verde refere à Casa de Bragança e o ouro, à de Habsburgo-Lorena, da qual provinha Dona Leopoldina da Áustria, a primeira imperatriz. Também parece antiga, pois Francisco Pereira Lessa, em artigo de 1930, cita um relatório de Antônio Teles da Silva Caminha e Meneses, embaixador em Viena e depois marquês de Resende, em que este diz ter dado essa explicação a Klemens von Metternich, o chanceler austríaco (4). O problema é que o verde nunca foi distintivo dos Braganças, ainda que não seja estranho à emblemática real portuguesa, pois é a cor da Ordem de Avis.
Libré da Casa Real, exibida no Museu Nacional dos Coches, Lisboa. |
Voltando, pois, ao raciocínio, o vermelho era a cor primária dos fardamentos da Casa Real e o branco e o azul eram as novas cores nacionais portuguesas desde agosto de 1821. Em termos heráldicos, o que restava? Certamente o negro, a cor do luto, e a púrpura, ambígua e rara, não eram melhores escolhas que o verde e o ouro, que não só contrastavam perfeitamente com as cores distintivas da ex-metrópole, mas cedo e facilmente puderam vincular-se com a compleição tropical e continental da nova nação. Enfim, repiso que, embora o brasão imperial brasileiro contenha elementos de vermelho, azul e prata, a figura principal é a esfera armilar de ouro, portanto o escudo tinha perfeita correspondência cromática com a bandeira e o laço nacionais.
(1) Dou os nomes franceses dos esmaltes a título meramente informativo, por ser a língua original da heráldica, mas saliento que não se devem usar no nosso idioma, pois na heráldica portuguesa sempre se usaram os nomes vernáculos das cores. Os termos goles, blau, sable e sinople são nada menos que espúrios. Pretendo aprofundar isso em postagem futura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário