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12/02/21

DE QUE MODO SE HÃO DE TALHAR AS ARMAS EM SELOS

O selo e o brasão estabeleceram uma das simbioses mais interessantes na emblemática ocidental, intercambiando-se, solapando-se, suplantando-se um ao outro.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(30) Istud melius ad oculum exemplificatur in incisione sigilli, quia magister ad modum Judæorum incipit scribere et per totum contrarium ad hoc ut in cera ad modum Christianorum imprimatur. Et istud exemplum est optimum ad exemplificandum in præmissa quæstione Judæi.

Ex his etiam apparet quod litteræ et arma in sigillis debent incidi per conversum, quia fit ad finem imprimendi ceram vel aliam materiam, et illud quod est in sigillo conversum in cera remanet rectum. Et ideo inspicere debemus ad quem finem fit, non id quod fit. Si vero incideretur non ad sigillandum, sed ut sic esset, tunc debet incidi directe.

(30) Isso se exemplifica melhor para o olho na talha de um selo, porque o mestre começa a escrever à maneira dos judeus, tudo ao contrário, para que se imprima na cera à maneira dos cristãos. Este exemplo é ótimo para exemplificar a questão do judeu, já adiantada.

Daí que também esteja claro por que se devem talhar as letras e armas nos selos pelo avesso: porque se faz para o fim de imprimir em cera ou outra matéria. Aquilo que no selo está pelo avesso na cera fica direito. Por isso, devemos observar o fim para o qual se faz, não o que se faz. Porém, se fosse talhado não para selar, mas para ficar como é, então se deve talhar naturalmente.

Comentário:

Depois de o tempo consumir o pano da bandeira, o tecido da cota, o revestimento do escudo ou da parede, devemos à resistência do selo boa parte do nosso conhecimento sobre a heráldica primitiva e clássica. Mais que isso: se os ornatos têxteis podem ter fornecido as peças e repartições à armaria, talvez os selos tenham veiculado as primeiras figuras, algumas das quais vieram tornar-se tão comuns, como o castelo. Com efeito, em Castela o castelo, antes de ser ordenado nas suas armas (de vermelho com um castelo de ouro, depois aberto e iluminado de azul), foi uma insígnia sigilar, como se vê desde 1176.

Selo de chumbo de Afonso VIII, rei de Castela (1176). Imagem disponível no projeto MOMECA.
Selo de chumbo de Afonso VIII, rei de Castela (1176). Imagem disponível no projeto MOMECA.

Daí que Michel Pastoureau já em 1976 tenha discernido as forças que deram origem à heráldica nos termos seguintes:

Les armoiries, telles qu'elles se présentent dans la seconde moitié du XIIe siècle, sont le résultat de la fusion en un seul système de différents éléments antérieurs. Ces éléments sont issus des bannières, des sceaux et des boucliers. Les bannières (le terme étant ici employé dans un sens générique regroupant les enseignes territoriales, les gonfanons et les bannières proprement dites) ont fourni les couleurs et leurs associations, certaines constructions du blason (pièces, partitions, semis) et le lion des armoiries primitives avec les fiefs. Des sceaux proviennent un certain nombre d'emblèmes (animaux, plantes) dont certaines grandes familles, notamment allemandes et italiennes, faisaient déjà usage à l'époque préhéraldique, l'emploi de figures parlantes et le caractère héréditaire de la plupart des armoiries. Aux boucliers, enfin, ont été empruntées la forme triangulaire, les fourrures et quelques pièces géométriques du blason (bordure, chef, pal, rais etc.). (1)

Mas não para aí. O selo e o brasão combinaram-se num momento em que o letramento ainda era um atributo da clerezia ou quase isso (2). No começo do Tractatus, Bártolo não comparou o brasão ao nome próprio por mera erudição. A analogia é bem tangível, tanto que os dois suportes mais resistentes das armas — a matéria impressa pelo selo e a pedra lavrada — serviam a práticas em que hoje empregamos os nossos nomes: para passar um documento, nós o assinamos; para identificar as nossas sepulturas, aqueles que nos depositam nelas apõem os nossos nomes. Isso pode explicar em parte por que a heráldica se difundiu de forma tão ampla relativamente em pouco tempo: a sociedade inteira, em grande medida iletrada, dispôs de um sistema de identificação visual, pessoal e transmissível. Isso também pode explicar por quê — à medida que a nobreza deixava de ser uma classe guerreira inculta para se tornar um corpo de oficiais a serviço da Coroa e, portanto, o grau geral de letramento aumentava — o sistema perdeu muito do seu caráter clássico, devido à conversão do brasão em "marca de fidalguia e honra", complementar de um sobrenome (ou apelido, no português europeu).

Enfim, graças ao avanço da tecnologia, até a assinatura do nome se tem tornado obsoleta. Para dar um exemplo, no IFRN, a instituição onde trabalho, faz algum tempo que todos os documentos com que normalmente instruímos os processos administrativos são eletrônicos: a autenticação é dada mediante um código verificável pela Internet e o emissor sequer precisa preocupar-se com o timbre, porque a programação já insere o desenho oficial das armas nacionais. Contudo, o documento mais importante que o Instituto passa, o diploma, ainda é emitido da forma mais tradicional: impresso em papel timbrado com as armas nacionais, assinado à mão pelos dirigentes máximos e chancelado com o selo nacional. Como eu disse na postagem de 23/01, à "deseraldização" das pessoas físicas corresponde a "heraldização" das pessoas jurídicas de direito público.

Nota:
(1) "O brasão, tal como se apresenta na segunda metade do século XII, é o resultado da fusão num só sistema de diferentes elementos anteriores. Esses elementos saíram das bandeiras, dos selos e dos escudos. As bandeiras (o termo é aqui empregado num sentido genérico, agrupando as insígnias territoriais, os gonfalões e as bandeiras propriamente ditas) forneceram as cores e as suas associações, certas construções da armaria (peças, partições, semeados) e o leão das armas primitivas com os feudos. Dos selos provêm certo número de emblemas (animais, plantas), dos quais certas grandes famílias, nomeadamente alemãs e italianas, já faziam uso no período pré-heráldico, o emprego de figuras falantes e o caráter hereditário da maioria das armas. Do escudo, enfim, foram emprestadas a forma triangular, as peles e algumas peças geométricas da armaria (bordadura, chefe, pala, raios etc.)." (tradução minha)
(2) Efetivamente, por essa época a palavra latina clericus toma, além de 'clérigo', o significado de 'letrado', o que se conservou no francês clerc.

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