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29/01/21

DE QUE MODO SE DEVEM PINTAR OS ANIMAIS EM BANDEIRAS

Nem tudo que se põe dentro de um escudo é um brasão, pois se não pode ser brasonado, não é um emblema heráldico.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(15) Sed dubitatur qualiter debeant prædicta animalia figurari: utrum quasi stent recta an quasi per terram plane ambulent vel quo modo? Respondeo: dicta animalia debent depingi in nobiliori actu eorum et in quo magis suum vigorem ostendunt (D, 1, 5, 10 [1]; D, 41, 1, 27, 2 [2]), sic enim ab antiquo usitatum videmus quod princeps in majestate, pontifices in pontificalibus depinguntur et figurantur.

(16) Nunc ad propositum dico quod quædam sunt animalia quorum natura fera est (D, 3, 1, 6 [3]), et ista debent figurari in actu ferociori, ut leo, ursus et similia. Et figurabitur ergo leo rectus et elevatus, mordens ore et scindens pedibus, et idem in similibus animalibus. In hoc enim actu magis suum vigorem ostendunt.

(17) Quædam sunt animalia non ferocia, et in his similiter debet inspici nobilior actus eorum, diversimode tamen. Si quis enim equum pro sua arma portaret, non debet eum designare rectum et elevatum, hoc est enim vitiosum in equo, sed debet eum figurare a parte anteriori aliqualiter elevatum, quasi sit equus currens vel saliens. In hoc enim actu major ejus vigor ostenditur.

(18) Sed si quis pro suis armis agnum portaret, tunc designare debet quasi plane ambulantem per terram, in hoc enim actu maxime ejus vigor ostenditur. Similia de avibus et aliis animalibus dicenda sunt.

(15) Mas se duvida de que modo se devem figurar os ditos animais: como se estivessem empinados ou como se andassem no chão ou de que modo? Respondo: devem-se desenhar os ditos animais na sua postura mais nobre e de modo a mostrarem mais o seu vigor (D, 1, 5, 10 [1]; D, 41, 1, 27, 2 [2]). Com efeito, desde tempo antigo vemos que é usual pintarem-se e figurarem-se o príncipe em majestade e os pontífices na pompa pontifical.

(16) A propósito, digo agora que há certos animais cuja natureza é selvagem (D, 3, 1, 6 [3]). Devem-se figurar em postura mais feroz, como o leão, o urso e semelhantes. Figurar-se-á, pois, o leão empinado e erguido, com a boca mordente e arranhando com os pés. O mesmo quanto a animais semelhantes. Efetivamente, nessa postura mostram mais o seu vigor.

(17) Certos animais não são ferozes. Quanto a eles, deve-se semelhantemente observar a sua postura mais nobre, porém de diversas maneiras. Com efeito, se alguém trouxesse um cavalo por armas, não deveria desenhá-lo empinado e erguido, pois isso é defeituoso num cavalo, mas deve figurá-lo, por assim dizer, erguido da parte dianteira, como se estivesse correndo ou saltando. Com efeito, nessa postura mostra-se o seu maior vigor.

(18) Mas se alguém trouxer um cordeiro por armas suas, então deve desenhá-lo como se estivesse andando no chão. Com efeito, nessa postura mostra-se muito mais o seu vigor. Semelhante coisa se há de dizer sobre as aves e outros animais.

Notas:
[1] D, 1, 5, 10: Quæritur: hermaphroditum cui comparamus? Et magis puto ejus sexus æstimandum, qui in eo prævalet (Pergunta-se: a qual sexo atribuímos um hermafrodita? Penso que se deve avaliar o que nele mais prevalece).
[2] D, 41, 1, 27, 2: Cum partes duorum dominorum ferrumine cohæreant, hæ cum quæreretur utri cedant, Cassius ait pro portione rei æstimandum vel pro pretio cujusque partis. Sed si neutra alteri accessioni est, videamus, ne aut utriusque esse dicenda sit, sicuti massa confusa, aut ejus, cujus nomine ferruminata est (Estando ligadas por solda as partes de dois donos, perguntar-se-ia para qual dos dois vão. Cássio diz que se deve avaliar pela porção da coisa ou pelo preço de cada parte, mas se nenhuma das duas é um acessório para a outra, vejamos: ou não se deve dizer que é de um e do outro, tal como uma massa confusa, ou que é daquele em cujo nome foi soldada).
[3] D, 3, 1, 6: Bestias autem accipere debemus ex feritate magis, quam ex animalis genere: nam quid si leo sit, sed mansuetus, vel alia dentata bestia mansueta? (Por bestas devemos entender mais com base na ferocidade do que na espécie animal, pois o que dizer se for um leão, porém amansado, ou outra besta amansada de dentes grandes?).

Comentário:

Em postagens anteriores (23/01 e 03/01), lancei dúvidas sobre o caráter heráldico do chamado brasão do Ceará. A esta altura, convém justificá-las. É simples: como se brasona isso?

Brasão do Ceará

O amável leitor poderá responder: basta consultar a descrição oficial. Com efeito, esse símbolo conta com o aparato completo: foi criado e revisado por lei e é regulado por manual de identidade visual. Mas apelar a essa descrição só aumentaria os problemas. Se não, vejamos:

O Brasão do Estado do Ceará será representado por um escudo polônio com campo verde, fendido, figurando na sua parte esquerda sete estrelas, na cor branca, que representam as mesorregiões do Estado, e, sobre o todo, a elipse central, com elementos internos distribuídos em quatro quadrantes, com a linha do horizonte no centro. O primeiro quadrante contém o sol e o farol do Mucuripe; o segundo, a serra e o pássaro; o terceiro, o mar e a jangada; e o quarto, o sertão e a carnaúba, simbolizando os quatros elementos da natureza: fogo, ar, água e terra. Como timbre, a figura de uma fortaleza de construção antiga, cor de ouro, com cinco merlões.

Ora, de linguagem heráldica esse texto só tem as palavras "campo verde, fendido". Em ordem:

  • escudo polônio: não se brasona a forma do escudo, porque é uma escolha meramente artística e para uniformização governamental pode ser estabelecida em desenho oficial, por meio do manual de identidade visual;
  • parte esquerda: como se vê, refere à esquerda do observador, que em heráldica é a destra do escudo;
  • cor branca: em heráldica não há branco, mas prata, que pode ser realizada pela cor branca;
  • representam, simbolizando: o brasonamento deve ser um ordenamento técnico e o mais conciso possível, portanto não se deve alongá-lo com colocações simbológicas;
  • elipse central: sinceramente, não sei o que equivaleria a isso em heráldica, porque a peça que cria um espaço entre o bordo do escudo e o campo é a bordadura, mas ela segue a forma do escudo, e a que cria um espaço no meio é o escudete, que pode ter uma forma diferente do escudo, mas não é tão grande;
  • quatro quadrantes: em heráldica não há quadrantes, mas quartéis, que são partições do campo; se o campo não for dividido, localizam-se as peças ou figuras por nove pontos convencionais;
  • o sol e o farol do Mucuripe etc.: não se brasonam os esmaltes das figuras, mas este nem é o maior problema; são oito figuras numa paisagem! A heráldica não foi feita para dar conta de uma tal complexidade.

Em suma, nem tudo que se põe dentro de um escudo constitui um brasão, pois não se definirá como tal o que não puder ser brasonado. Todavia, não julgue, caro leitor, que faço esta crítica de um ponto de vista pedante. Na verdade, o emblema cearense é belo, significativo e bem empregado (1) e a minha intenção é justamente o contrário: arrazoar que a linguagem heráldica não é tão hermética quanto parece e às vezes, por desconhecimento ou por autêntico pedantismo, é cultivada.

Efetivamente, no trecho que publico hoje, Bártolo revela-nos um dos principais mecanismos dessa linguagem: em heráldica, cada uma das peças e das figuras mais usuais tem um predicativo por defeito, que é desnecessário brasonar, de modo que dizer, por exemplo, leão rampante é um pleonasmo, pois é a sua postura ordinária. Isso por si só já corta excessos; além disso, para expressar predicativos diferentes nem é preciso verbosidade nem rebuscamento. Sendo o francês a língua em que se criou o sistema, opera-se fundamentalmente com dois particípios de origem latina: o particípio presente e o passado. Em geral, aquele supõe movimento e este, estado. Assim, um leão que está de frente para outro, está batalhante; em postura de andar, passantese tem garras de esmalte diferente, está armado; se a língua, lampassado.

Enfim, dizer qual é o esmalte do campo ou das partições, qual é a peça e/ou figura, o seu esmalte e predicativo, se tiver algum diferente do ordinário, tanto se há um só elemento como vários, isso deveria bastar para brasonar quaisquer boas armas. É por isso que talvez a regra mais transcendental da heráldica seja a simplicidade: quanto mais carregado, mais difícil fica sustentar a natureza armorial de um escudo.

Nota:
(1) Se não é um brasão, é o quê? Certamente um emblema, mas para complementar uma definição tão vaga, proponho alguns neologismos: emblema heraldizado
pseudobrasão, insignoide. É claro, não obstante, que se continuará a chamá-lo de brasão, porque assim consagrou o uso.

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