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16/12/21

OS BRASÕES DO BRASIL HOLANDÊS: ITAMARACÁ, PARAÍBA E RIO GRANDE

Os holandeses usaram a heráldica para conservar a denominação de capitania nas jurisdições de certas câmaras de escabinos.

As histórias das capitanias de Itamaracá, da Paraíba e do Rio Grande são semelhantes e estiveram interligadas. Com efeito, a primeira se estendia desde a desembocadura meridional do canal de Santa Cruz até a baía da Traição e a terceira, desde essa baía até a angra dos Negros, que talvez seja a enseada do Iguape. Aquela foi doada por Dom João III a Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso de Sousa, primeiro capitão de São Vicente e décimo segundo governador da Índia; esta conjuntamente a João de Barros e Aires da Cunha, cabendo ao famoso cronista a porção até a foz do Açu e ao navegador, daí em diante.

A maior parte dessa costa era habitada pelos potiguaras, que, ao contrário dos tabajaras em Pernambuco, resistiram ferozmente à conquista portuguesa, ao tempo que faziam escambo de pau-brasil com os franceses. Os colonos tiveram de travar uma guerra cruenta para subjugá-los e foi nessa conjuntura que se criou a capitania da Paraíba: tanto Aires da Cunha como Pero Lopes de Sousa faleceram em naufrágios, respectivamente em 1536 e 1539, sem terem conseguido empreender a ocupação das suas capitanias. João de Barros não chegou a vir, mas seus filhos fizeram uma segunda tentativa em 1555, outra vez sem sucesso. Endividado, morreu em 1570 e a capitania reverteu para a Coroa em 1582, mediante o perdão da dívida e uma indenização ao herdeiro.

Itamaracá permaneceu donataria, mas após o massacre de Tracunhaém, em 1574, quando os potiguaras mataram os povoadores do engenho desse nome, na ribeira do Goiana, a Coroa teve de assumir a conquista da região. Como compensação desse esforço, desmembrou então o território de Itamaracá ao norte do dito rio para criar a capitania real da Paraíba. Por uma série de sucessões colaterais, a posse de Itamaracá veio em 1617 a Álvaro Pires de Castro e Sousa, sexto conde de Monsanto, depois primeiro marquês de Cascais, e na sua linhagem perpetuou-se até a extinção desta, em 1745. O marido da filha única do quarto e derradeiro marquês, Francisco Xavier Rafael de Meneses, segundo marquês de Louriçal, assumiu a capitania, mas como também faleceu sem descendente, a Coroa resolveu indenizar o pretendente e incorporá-la em Pernambuco em 1763.

Quando da invasão holandesa, cada uma dessas capitanias tinha um só concelho, servindo-lhe de cabeça: em Itamaracá, a vila da Conceição; na Paraíba, a cidade Filipeia; no Rio Grande, a cidade do Natal. Elas nasceram diretamente do combate à resistência indígena e ao corso francês.

Selo da câmara de justiça de Itamaracá (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).
Selo da câmara de justiça de Itamaracá (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).

A vila de Nossa Senhora da Conceição foi fundada por João Gonçalves, lugar-tenente de Isabel de Gamboa, esposa de Pero Lopes de Sousa e tutora de seu filho, menor de idade, em 1547, onde já havia uma capela sob esse título mariano ao menos desde 1526. Em 1742, a câmara foi transferida para Goiana, que fora elevada a vila em 1685. Só recobrou a antiga condição em 1958, com o nome de Itamaracá, e desde 1997, com o de Ilha de Itamaracá.

Brasão da câmara de justiça de Itamaracá (gravura n.º 18 da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647); desenho de Frans Post, gravado por Johan van Brosterhuysen; disponível na Wikimedia Commons).
Brasão da câmara de justiça de Itamaracá (gravura n.º 18 da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647); desenho de Frans Post, gravado por Johan van Brosterhuysen; disponível na Wikimedia Commons).

Os holandeses invadiram a ilha de Itamaracá em abril de 1631, mas os portugueses tinham reforçado as suas defesas, de modo que preferiram construir uma fortaleza à entrada do canal: o Forte Orange, hoje de Santa Cruz de Itamaracá. Voltaram em julho de 1633 e a vila capitulou. Foi renomeada Cidade de Schkoppe (Stad van Schkoppe), em homenagem a Sigmund von Schkoppe, o comandante da campanha, porque como os holandeses eram calvinistas, não lhes fazia sentido a reverência a uma advocação mariana. Segundo Fernanda Trindade Luciani na sua dissertação de mestrado, é provável que a câmara de vereadores já se reunisse em Goiana em 1636, de modo que foi aí no ano seguinte que se instalou a câmara de escabinos e aí permaneceu, malgrado o governo ter aprovado o retorno dela à ilha em 1639, por proposição do diretor da jurisdição. Deram-se-lhe as seguintes armas: de ... com três cachos de uvas de ...Os exemplares coloridos da Rerum per octennium in Brasilia... apresentam os esmaltes seguintes:

  • Biblioteca Nacional: de prata com três cachos de uvas de azul, sustidos e folhados de verde;
  • Colección Patricia Phelps de Cisneros: de prata com três cachos de uvas de azul, sustidos e folhados de verde;
  • Oliveira Lima Library: de prata com três cachos de uvas de púrpura, sustidos e folhados de verde.

Selo da câmara de justiça da Paraíba (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).
Selo da câmara de justiça da Paraíba (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).

A cidade Filipeia foi fundada por Martim Leitão, ouvidor-geral do estado do Brasil, aos 5 de agosto de 1585, sob o patrocínio de Nossa Senhora das Neves, cuja festa se celebra nesse dia. Mais precisamente, nessa data os tabajaras fizeram a paz com os portugueses, o que lhes permitiu virar o jogo na luta contra os potiguaras. Como Filipeia era uma evidente homenagem a Filipe I (II de Castela), nem aos holandeses nem aos portugueses, após a restauração da independência e da colônia, interessou conservar esse nome: expulsos aqueles, ficou sendo singelamente a cidade da Paraíba, João Pessoa desde 1930.

Brasão da câmara de justiça da Paraíba (gravura n.º 27 da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647); desenho de Frans Post, gravado por Johan van Brosterhuysen; disponível na Wikimedia Commons).
Brasão da câmara de justiça da Paraíba (gravura n.º 27 da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647); desenho de Frans Post, gravado por Johan van Brosterhuysen; disponível na Wikimedia Commons).

Os holandeses tomaram Filipeia em dezembro de 1634, sob o comando do dito coronel von Schkoppe. Renomearam-na Frederícia (Frederikstad), em homenagem a Frederico Henrique de Nassau, príncipe de Orange. Em 1637, instalou-se aí uma câmara de escabinos, à qual se deram as armas seguintes: de ... com seis pães de açúcar de ..., postos três, dois, umOs exemplares coloridos da Rerum per octennium in Brasilia... apresentam os esmaltes seguintes:

  • Biblioteca Nacional: de azul com seis pães de açúcar de ouro, postos três, dois, um;
  • Colección Patricia Phelps de Cisneros: de azul com seis pães de açúcar de prata, postos três, dois, um;
  • Oliveira Lima Library: de vermelho com seis pães de açúcar de ouro, postos três, dois, um.

Cabe recordar que três, dois, um é a posição ordinária de seis figuras na armaria francesa, mas na portuguesa se põem ordinariamente dois, dois, dois. 

Selo da câmara de justiça do Rio Grande (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).
Selo da câmara de justiça do Rio Grande (xilogravura atribuída a H. Breckenveld, publicada por Alfredo de Carvalho (1904); imagem disponível na Wikimedia Commons).

A fundação da cidade do Natal marcou o fim da guerra contra os potiguaras, que fizeram a paz com os portugueses para escapar à escravidão em massa. Deu-se aos 25 de dezembro de 1599 e atribui-se tradicionalmente a Jerônimo de Albuquerque, comandante da Fortaleza dos Reis Magos, cuja construção começara aos 6 de janeiro do ano anterior.

Brasão da câmara de justiça do Rio Grande (gravura n.º 30 da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647); desenho de Frans Post, gravado por Johan van Brosterhuysen; disponível na Wikimedia Commons).
Brasão da câmara de justiça do Rio Grande (gravura n.º 30 da Rerum per octennium in Brasilia..., de Gaspar Barleu (1647); desenho de Frans Post, gravado por Johan van Brosterhuysen; disponível na Wikimedia Commons).

Os holandeses tomaram Natal em dezembro de 1633, quando a guarnição da fortaleza se rendeu à expedição sob o comando do diretor Matthias van Ceulen. Como Reis Magos e Natal são denominações católicas, a fortaleza recebeu o nome do seu conquistador, Castelo de Ceulen, e a cidade foi chamada Nova Amsterdã (Nieuw-Amsterdam). Mas a pobre povoação ainda estava tão arrasada em 1637 que, ao se converter a capitania na jurisdição de uma câmara de escabinos, resolveu-se instalá-la junto ao engenho Potiji (Potenji?), que ficava em Utinga, hoje localidade do município de São Gonçalo do Amarante. Deram-se-lhe as armas seguintes: de ... com um avestruz de ..., sustido por um rio de ...Os exemplares coloridos da Rerum per octennium in Brasilia... apresentam os esmaltes seguintes:

  • Biblioteca Nacional: de ouro com um avestruz de negro, sustido por um rio de azul e prata;
  • Colección Patricia Phelps de Cisneros: de verde com um avestruz de prata, sustido por um rio de prata e azul de três peças;
  • Oliveira Lima Library: de ouro com um avestruz de azul (?), sustido por um rio de prata e azul de três peças.

Ainda que descrita como avestruz, essa ave trata-se, obviamente, de uma ema (Rhea americana), a ratite do Novo Mundo.

Observe-se que esses brasões são mais ornados que aqueles das demais câmaras de Pernambuco, como adiantei na postagem de 08/12. Além de um coronel, cada um traz suportes que saem de trás do escudo e se relacionam com a figura: no de Itamaracá, ramos de videira com os seus cachos de uvas; no da Paraíba, canas-de-açúcar; no do Rio Grande, plumas da ave.

Enfim, os casos de Itamaracá, da Paraíba e do Rio Grande demonstram como era indiferente para os holandeses onde ficava a sede da câmara de justiça e como se chamava a localidade. Por isso mesmo, não causava estorvo conservar as denominações de capitanias. Antes o contrário, suavizava a transição da administração portuguesa para a holandesa e contribuía com a integração dos colonos ao domínio novo.

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