Séries de postagens

24/11/21

A ARTE HERÁLDICA (VI)

A heráldica clássica, revalorizada na contemporaneidade, é quase totêmica: uma figura basta. Daí o ditame da simplicidade.

Gostei tanto da série sobre bons brasões criados a partir da proposta de Tristão de Alencar Araripe para Fortaleza que resolvi continuar, pois outra capital, a deste estado vizinho aonde vim morar, também acolheu a ideia do estadista cearense e aqui é igualmente possível achar mais três brasões com o mesmo mote. Falo das armas de Natal, da arquidiocese de Natal, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do 3.º Distrito Naval da Marinha do Brasil.

Começando, pois, pela proposta de Tristão de Alencar Araripe, contida no mesmo artigo que citei no dia 14, é a seguinte: "Em campo azul uma estrela caudada, de prata, com a coroa mural sobreposta. Mote: Gloria in excelsis Deo". Quem se lembrar de que a proposta para Fortaleza também consiste do campo com uma figura e desconfiar que seja um padrão, estará certo. E é um alto padrão, já que procura reproduzir o melhor da armaria municipal mais antiga. Trocando em miúdos, assim como Basileia tem o seu báculo, Berlim o seu urso, Edimburgo o seu castelo, Estocolmo a sua cabeça de rei, Florença a sua flor de lis, Lyon o seu leão ou Varsóvia a sua sereia, o nosso autor dá a São Luís três capulhos de algodão, a Teresina três piaus, a Fortaleza um castelo, a Natal uma estrela caudata, a Recife um recife batido pelo mar, a Maceió três faixas ondadas, a Vitória a imagem de Nossa Senhora das Vitórias, a Niterói (então capital do estado) três cafeeiros, a São Paulo a imagem de São Paulo, a Curitiba um pinheiro etc.

Mas o que é uma estrela caudata ou caudada? Luís Stubbs Saldanha Monteiro Bandeira, no seu Vocabulário heráldico (1985), trata dessa figura em dois verbetes. O primeiro, caudato:

Caudato – Aplica-se este termo ao cometa ou estrela que tem cauda, isto é, que tem cauda ondeada, sempre posta para baixo, para a ponta do escudo, que pode ser de diferente esmalte, circunstância que é preciso notar ao brasonar.

Portanto, além da variação caudado/caudato, a figura pode também denominar-se cometa. Ora, um cometa não tem uma posição natural em relação ao seu eixo, como a maioria dos seres vivos, que normalmente ficam em pé. Dependendo da sua trajetória e da perspectiva de quem o vê da terra, parece subir ou cair ou mesmo viajar rente ao horizonte. Perceba-se, a propósito, que Tristão de Alencar Araripe não indica qual é o sentido em que a estrela caudada se acha. Saber que a cauda fica para baixo não basta, já que elimina apenas a posição em faixa. No entanto, penso que das três restantes, nem em banda nem em barra, mas sim em pala é a posição menos marcada, e assim ordenei.

O segundo verbete é, precisamente, cometa:

Cometa – Astro que se representa diferenciado das estrelas pela cauda que tem e que se alarga para o lado oposto do centro luminoso.
A cauda pode ser de raio endentado ou formado por linhas retas, ao que vulgarmente alguns autores chamam caudato.
Deve ser a cauda desenhada com três comprimentos mais do que os outros raios, que devem ser num total de seis.

A segunda dúvida respeita à forma da cauda, pois Luís Stubbs diz primeiro que é ondeada, depois que pode ser endentada ou retilínea. Acho que a noção de posição e disposição, ou não marcado e marcado, a resolve: por defeito, a cauda há de ser ondeada, mas nada impede que tome outras formas, contanto que se brasone devidamente. Tudo isto me leva a reproduzir a proposta de Tristão de Alencar Araripe assim:

Proposta de brasão para Natal (por Tristão de Alencar Araripe): de azul com uma estrela caudata de prata.
Proposta de brasão para Natal (por Tristão de Alencar Araripe): de azul com uma estrela caudata de prata.

Natal foi fundada em 25 de dezembro de 1599. Como dissertei na postagem de 23/04, juntamente com a de João Pessoa, então Filipeia, essa fundação fazia parte da estratégia portuguesa para assegurar o domínio da região, sob a ameaça do corso francês. As barras dos rios Paraíba e Potenji são os dois maiores estuários desde o porto do Recife até o cabo de São Roque. Em cada uma, os portugueses levantaram primeiro uma fortaleza: respectivamente a de São Filipe (depois outra, a de Nossa Senhora das Neves, e, por fim, a de Santa Catarina) e a dos Reis Magos. Em seguida, assentaram alguns colonos um pouco mais a montante sob o pomposo título de cidade. Portanto, ainda que durante toda a colonização não tenha passado de um lugarejo bem pobre, Natal nunca foi vila: cidade do Natal.

Esses fatos fazem da proposta uma espécie diferente de armas falantes, se é que se podem classificar como tais. É que a definição de armas falantes fundamenta-se na semelhança de certa peça ou figura com o nome do armígero, o que não se constata no caso. No entanto, o efeito é praticamente o mesmo: facilmente se estabelece uma relação semântica da estrela caudata com o nome Natal. Afinal, a chamada Estrela de Belém é um símbolo natalino: "Depois que Jesus nasceu na cidade de Belém da Judeia, na época do rei Herodes, alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus que acaba de nascer? Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo'" (Mateus, 2, 1-2). Evitando a polêmica da historicidade — que não vem ao caso —, desde o afresco de Giotto na Capela dos Scrovegni, pintado entre 1303 e 1305, se tornou muito habitual figurar tal estrela como um cometa na iconografia ocidental, especialmente na heráldica, onde comporta a vantagem de distingui-la claramente de outras estrelas.

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