O brasonamento não é uma sequência de termos raros, conectados ao capricho do heraldista, mas integram um sistema semiótico particular.
Do Tratado Prinsault (1444):
Le neuviesme chapitre traite de certaines différences d'oiseaux et bestes en blason d'armes.
De tous oiseaux qui ont bec, jambes et pieds d'autre métal ou couleur que le corps, on doit dire et blasonner membrés, excepté la merlette, laquelle en armes jamais n'a jambes ne pieds. Et de lions, léopards et autres qui ont dents et ongles d'autre couleur que le corps, on dit en blason comme il appert ci-après.
D'argent à trois papegaux de sinople. (1) |
D'argent à une merlette de sable. (2) |
De gueules à un lion d'or, armé de sable. |
O nono capítulo trata de certas diferenças de aves e bestas no brasão de armas.
De todas as aves que têm bico, pernas e pés de outro metal ou cor, diferente do corpo, deve-se dizer e brasonar membradas, exceto a merleta, que nas armas nunca têm pernas nem pés. Dos leões, leopardos e outros que têm dentes e unhas de outra cor, diferente do corpo, diz-se no brasão como se evidencia a seguir.
De prata com três papagaios de verde. |
De prata com uma merleta de negro. (2) |
De vermelho com um leão de ouro, armado de negro. |
Comentário:
O que o autor chama de certas diferenças é o que eu chamo de predicativos. Na Idade Moderna, a literatura técnica heráldica distinguiu-os por meio dos termos posição, disposição e situação:
- posição: é o qualificador por defeito, que não se brasona, como a posição rampante do leão e a estendida da águia;
- disposição: é o qualificador que difere do padrão e, por isso, deve brasonar-se, como armado, para indicar que as garras do leão, da águia ou de outro animal têm esmalte diferente do corpo;
- situação: é o que chamo de dêitico locativo e refere à posição cujo brasonamento se dá pela relação de uma figura com outra.
Apesar do esforço em busca de exatidão, parece-me insuficiente, pois ignora distinções significativas da sintaxe heráldica. Com efeito, na linguagem da armaria não há predicados verbais, de modo que por uma águia negra tem garras douradas ou dois leões dourados sustentam uma cruz negra se diz uma águia de negro, armada de ouro e uma cruz de negro, sustida por dois leões de ouro. Tudo funciona, pois, por meio dos particípios (o presente acabado em -nte e o passado, em -do/a), ao que subjaz um predicado nominal:
- um leão de ouro, [que está] armado de negro;
- um leão de ouro, [que está] alado de negro;
- um leão de ouro, [que está] encimado de uma estrela de prata;
- dois leões de ouro, [que estão] batalhantes.
Além dos particípios disponíveis no léxico comum, esse mecanismo criou alguns que conferem à linguagem heráldica certa singularidade. Por exemplo, de uma ave de cetraria (açores, águias, falcões, gaviões) cuja cabeça está coberta por um caparão diz-se caparoada, como se o verbo *caparoar existisse. Segue-se também que até o uso das preposições fica restrito à transitividade dos particípios, de modo que por um leão dourado dentro de uma orla prateada ou uma águia negra sobre um monte verde se diz um leão de ouro encerrado por uma orla de prata e uma águia de negro pousada num monte de verde.
É por todas estas razões que às diferenças do Tratado Prinsault e às disposições e situações dos tratados modernos chamo predicativos. Com base na predicação da figura ou do seu arranjo no campo ou em relação a outra figura, distingo duas classes: qualificadores e dêiticos. À sua vez, com base na modificação da forma, do esmalte ou de ambas as coisas, individuo três subclasses de qualificadores, e com base na sequência das figuras, duas subclasses de dêiticos.
- Qualificador: Predica a peça ou figura.
- Qualificador de forma: Altera apenas a forma ordinária da peça ou figura, de modo que se encaixa no sintagma nominal nucleado por ela. Portanto, a sua sintaxe é F Qf de E, como um leão passante de ouro ou uma águia voante de negro.
- Qualificador de esmalte: Altera apenas o esmalte da peça ou figura e é expresso por um sintagma subsequente ao nucleado por ela. Portanto, a sua sintaxe é F de E, Qe de E, como um leão de ouro, armado de negro ou uma águia de negro, bicada e membrada de ouro.
- Qualificador de forma e esmalte: Altera apenas a forma ordinária da peça ou figura ou também o seu esmalte. Portanto, a sua sintaxe pode ser igual à do qualificador de forma, isto é, F Qfe de E, como um leão alado de ouro ou uma águia caparoada de negro, ou igual à do qualificador de esmalte, isto é, F de E, Qfe de E, como um leão de ouro, alado de negro ou uma águia de negro, caparoada de ouro. A diferença está no fato de que no primeiro caso a forma da figura é modificada (o leão fica dotado de asas e a cabeça da águia é coberta com um caparão), mas tudo está iluminado do mesmo esmalte, ao passo que no segundo caso a modificação tem esmalte diferente (o leão de ouro, somente as asas de negro; a águia de negro, somente o caparão de ouro).
- Dêitico: Predica o arranjo da peça ou figura no campo ou em relação a outra.
- Dêitico relativo: Refere à relação entre uma peça ou figura principal e uma peça ou figura adicional. A sua sintaxe é F de E, Dr(+P) F de E, como um leão de ouro, encimado de uma estrela de prata ou uma águia de negro, carregada de um escudete de ouro.
- Dêitico locativo: Refere à posição em que uma peça ou figura se acha em relação a outra. A sua sintaxe é F de E, Dl, como dois leões de ouro batalhantes.
Não à toa, o autor seleciona os animais para tratar dos predicativos, pois são possivelmente o conjunto de figuras que os tem em maior número. Estes são os mais frequentes na heráldica lusófona:
I. Qualificadores de forma
Abatido: Diz-se da ave ou voo cujas asas
estão meio abertas e apontam para
o baixo. Fr. abaissé.
Agachado: Diz-se do quadrúpede que está
sentado, isto é, descansa a sua parte de trás, enquanto as patas traseiras
ficam dobradas, e mantém a frente erguida sobre as dianteiras. Se é um
leporídeo, é desnecessário brasonar este predicativo, pois é o seu ordinário.
Fr. accroupi.
Agarrando: Diz-se da ave de rapina que
segura uma presa com as garras. Fr. empiétant.
Assentado
ou assente:
Diz-se da águia que está agachada sobre o seu ninho. Fr. posé.
Cantante: Diz-se do galo cujo bico está
aberto. Fr. chantant.
Correndo: Diz-se do quadrúpede cujas
patas estão suspensas, como se corresse saltando. Fr. courant.
Deitado: Diz-se do quadrúpede que descansa,
geralmente com as patas traseiras dobradas e as dianteiras estendidas para
frente. Fr. couché.
Empinado: Diz-se do equino que se ergue
sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras. Fr. cabré.
Enroscado: Diz-se da serpente que está enrolada noutra figura ou sobre si mesma. Fr. accolé.
Espantado: Diz-se do bovino que se ergue sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras. Do touro diz-se que está furioso. Fr.
effaré.
Estendido: Diz-se da ave ou do voo cujas asas estão
abertas e apontam para o alto. Em se tratando da águia, não é preciso brasonar este predicativo, pois é o seu ordinário. Fr. étendu, éployé (águia).
Furioso: Diz-se do touro que se ergue
sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras. Fr. furieux.
Monstruoso: Diz-se do animal que tem face humana. Fr.
monstrueux.
Ousado: Diz-se do galo que abre o seu bico e levanta
o pé direito. Fr. hardi.
Parado: Diz-se do quadrúpede cujas
patas estão no chão. Fr. arrêté.
Passante: Diz-se do quadrúpede que
suspende a pata dianteira direita enquanto as demais ficam no chão, como se
começasse a andar. Em se tratando do leopardo, não é preciso brasonar este predicativo, pois é o seu ordinário. Fr. passant.
Pousado: Diz-se da ave que está assentada sobre uma figura. Fr. perché.
Rampante: Diz-se do animal que se ergue sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras. Em se tratando do leão ou do grifo, não é preciso brasonar este predicativo, pois é o seu ordinário. Do equino diz-se que está empinado; do touro, furioso; dos demais bovinos, espantado; dos demais bovídeos, saltante. Fr. rampant, ravissant (lobo).
Rompente: É o mesmo que rampante.
Saltante: Diz-se do bovídeo ou do unicórnio que se ergue sobre as suas patas traseiras, suspendendo as dianteiras. Do bovino diz-se que está espantado. Fr. saillant, sautant (carneiro).
Voando: Diz-se do animal cujas asas estão abertas e
cujos demais membros se acham na sua postura natural ao voar. Fr. volant.
Voante: Diz-se da ave que está de perfil com as asas estendidas, como se alçasse voo. Fr. essorant.
II. Qualificadores de esmalte
Animado: Diz-se do animal cujo olho tem
esmalte diferente do corpo. Fr. allumé, animé (cavalo).
Armado: Diz-se dos animais cujas garras
ou cujos chifres têm esmalte diferente do corpo. Fr. armé, accorné (chifres).
Barbado: Diz-se do golfinho ou galo cuja
barba ou barbilhão tem esmalte diferente do corpo. Fr. barbé.
Bicado: Diz-se da ave cujo bico tem
esmalte diferente do corpo. Fr. becqué.
Cristado: Diz-se do galo cuja crista tem
esmalte diferente do corpo. Fr. crêté.
Defendido: Diz-se do javali ou elefante
cujas defesas (isto é, presas) têm esmalte diferente do corpo. Fr.
défendu.
Dentado: Diz-se do animal cujos dentes
têm esmalte diferente do corpo. Fr. denté.
Lampassado: Diz-se do animal cuja língua tem esmalte
diferente do corpo. Fr. lampassé.
Linguado: É o mesmo que lampassado. Fr.
langué.
Membrado: Diz-se da ave cujos pés e cujas partes
desplumadas das pernas têm esmalte diferente do corpo. Fr. membré.
Sancado: É o mesmo que membrado.
Unhado: Diz-se do animal de cascos cujas unhas têm
esmalte diferente do corpo. Fr. onglé.
Vilanado: Diz-se do animal cujos genitais têm esmalte diferente do corpo. Fr. vilené.
III. Qualificadores de forma e esmalte
Açaimado: Diz-se do animal que traz
açaime (isto é, mordaça). Fr. emmuselé.
Acorrentado: Diz-se do animal que está preso
por uma corrente. Fr. enchainé.
Ajaezado: Diz-se do cavalo que traz o seu
jaez (isto é, arreios).
Alado: Diz-se da figura que traz asa
ou asas contra a natureza. Diz-se também do animal voador cujas asas têm
esmalte diferente do corpo. Fr. ailé.
Caparoado: Diz-se da ave de cetraria cuja cabeça traz caparão. Fr. chaperonné.
Cevado: Diz-se do lobo que traz um
cordeirinho na boca, entre os dentes, como se o tivesse abatido.
Chocalhado: Diz-se do animal cuja coleira
tem chocalho. Fr. clariné.
Coleirado: Diz-se do animal que traz
coleira. Fr. colleté.
Ferrado: Diz-se do cavalo cujas ferraduras têm
esmalte diferente do corpo.
Malhado: Diz-se do animal cujas malhas têm esmalte
diferente do corpo. Fr. tacheté.
IV. Dêiticos relativos
Engolido: Diz-se da peça cujas extremidades
entram nas bocas de animais, especialmente leões e serpes, dos quais aparecem
apenas as cabeças. Fr. engoulé.
Nadante: Diz-se do animal que carrega uma peça ou
figura que representa água ou está sustido por ela e se acha na sua postura
natural ao nadar. Fr. nageant.
Nascente: Diz-se do animal que mostra apenas a metade
superior do corpo, como se o resto estivesse detrás da partição, peça ou figura
de que parece surgir. Fr. naissant.
Sainte: Diz-se do animal que parece
sair de trás de uma partição, peça ou figura, porque se veem apenas a sua
cabeça e o corpo até a espádua. Fr. issant.
V. Dêitico locativo
Batalhante: Diz-se de dois animais
afrontados em postura de combate. Propriamente, este atributo só se distingue
do afrontado em se tratando dos animais cuja posição ordinária não é a
rampante ou equivalente.
(1) O artista iluminou os papagaios bicados e membrados de vermelho, o que condiz com o texto do capítulo, mas o brasonamento omite isso. Segui o brasonamento.
(2) Atualmente há duas espécies de merletas, que é uma ave imaginária: a merleta francesa parece um patinho sem bico nem pés; a merleta inglesa parece uma andorinha sem pés. No caso, o artista reproduziu uma merleta inglesa, no que o segui.
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