De alguns emblemas é possível compreender o conceito, mas dificilmente são reformáveis, de modo que se faz preciso criar um brasão novo.
A terceira postagem sobre possibilidades caso se instituísse uma autoridade heráldica no Brasil, ou melhor, uma em cada estado — pela minha visão o instituto histórico e geográfico — aborda o caso dos municípios cujos emblemas distam tanto da arte heráldica sob qualquer perspectiva que sequer é reformável para transformá-lo num brasão, mas é preciso criar um ordenamento novo.
No Seridó, alguns emblemas municipais, mesmo contendo um escudo, dificilmente seriam reformáveis, como o de Serra Negra do Norte, porque consiste numa vinheta repleta de muitas figuras. Não obstante, há um que sequer parece um brasão: o de Equador. É o que vou tomar por exemplo nesta postagem.
Antes, a contextualização costumeira: Equador tinha 6.054 habitantes em 2020, o seu PIB (R$ 6.3870.650) era o 105.º do estado em 2018 e o IDH (0,623), o 51.º em 2010. Criado distrito de Parelhas em 1938, foi elevado a município em 1963. Eis o seu emblema:
Emblema de Equador. Imagem disponível no website da câmara municipal. |
De cara, o improvável leitor deste blog terá percebido que nesse emblema não há nada de heráldica. Não há campo; a composição cromática nada tem a ver com o código heráldico; mapas são figuras de péssimo gosto, porque demonstram uma falta de criatividade tremenda. Mesmo como emblema, acho complicado, feio e pouco representativo. Não obstante, como eu disse ao começar esta série de postagens, prefiro a crítica construtiva à destrutiva. Assim, procuremos compreender o conceito que esse símbolo denota, por partes.
Primeiro, se Equador quer um emblema circular para enfatizar o seu nome, não há problema algum nisto: que o escudo seja redondo. Se eu viesse objetar que deveria ser o chamado escudo português, isto é, de ponta arredondada, a coerência me imporia o encerramento deste blog, já que seria uma gritante hipocrisia em relação a tudo que tenho escrito sobre a diferença de campo para escudo e o caráter artístico da escolha deste. Tanto é assim que na proposta para Acari preservei a forma do escudo, o chamado francês moderno, de ângulos inferiores arredondados e ponta aguçada.
Depois, se nesse campo se quer figurar algo que refira mais diretamente ao nome Equador, também não há dificuldade: a figura principal pode ser uma faixeta. A faixa é uma peça horizontal e tem ordinariamente de altura o equivalente a um terço da largura do escudo. Se a altura da faixa for diminuída pela metade, ela receberá o nome de divisa; se for diminuída a um terço, o nome de faixeta.
Em terceiro lugar, entendo que o mapa indica a localização do Rio Grande do Norte ao sul do equador e a situação de Equador como o município mais meridional do estado. Qual figura costuma representar o sul em heráldica? Precisamente a principal das nossas armas nacionais: o Cruzeiro do Sul. Em vez de mapa, a faixeta pode ficar acompanhada dessa constelação em ponta.
Para acompanhar em chefe a faixeta, falta uma figura. No listel, leem-se duas datas: 1870 e 1963. Esta é o ano da emancipação; e aquela? É o ano da primeira feira livre, ou seja, remonta à origem da povoação. Com efeito, durante as décadas de quarenta e cinquenta do século XIX houve uma pandemia de cólera; atingiu o Rio Grande do Norte em 1856. Foi então que Simão Gomes da Silva, um morador da região, fez uma promessa a São Sebastião pela sua saúde e da sua família. Salvo da peste, ergueu uma capela sob o título desse santo, em volta da qual surgiu o povoado que viria tornar-se a cidade de Equador. Parece-me um acontecimento digno de figurar num brasão e São Sebastião tem atributos icônicos singelos e belos: o molho de flechas e o capacete de soldado. Escolho este.
Um parêntese: quem me conhece sabe o quanto defendo que o estado seja laico e continue a sê-lo, mas evitar a todo custo qualquer referência religiosa em heráldica por prurido laicista é negar a história, porque a religião faz parte dela, inseparavelmente. Seja por ter constituído uma política de estado ou por causa da devoção de um fundador, a religião está presente na onomástica, no patrimônio material e imaterial, na memória da comunidade. Além do mais, muitos atributos icônicos de santos permitem leituras seculares: uma estrela pode simbolizar esperança; um capacete de soldado, coragem.
Enfim, proponho o brasão seguinte para Equador: de azul com uma faixeta de ouro, entre um casco romano e cinco estrelas postas como a constelação do Cruzeiro do Sul, tudo de prata; timbre: coroa mural de cinco torres de prata; suportes: dois ramos de algodoeiro de verde, folhados do mesmo, com capulhos de prata; divisa: Medio tutissimus ibo, escrita de negro em listel de prata. Observe-se, prezado leitor, que os esmaltes correspondem às cores que o município já usa na sua emblemática. Nenhuma dificuldade nisto, tampouco.
Quanto aos ornamentos externos, a coroa mural está justificada nas postagens anteriores e os ramos de algodoeiro são quase um padrão seridoense, em virtude do ciclo econômico de que tratei nas mesmas postagens. Devo, ainda, remeter o paciente leitor a essas postagens para o que diz respeito à minha rejeição dos topônimos e das datas e à defesa das divisas. A que proponho para Equador acha-se nas Metamorfoses (2, 137) de Ovídio (43 a.C.-17/18 d.C.), poeta romano dos mais clássicos. A redação original é "Medio tutissimus ibis" e quer dizer "Pelo meio irás mais seguro". Adaptei, pois, ibis para ibo, isto é, 'irei'. No contexto da proposta, o meio refere ao nome Equador; o predicativo mais seguro, não só à origem da cidade na busca de proteção contra a peste, mas também à virtude da temperança, muito coerente com o verbo no futuro.
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