Séries de postagens

02/02/21

DE QUE MODO SE DEVEM FAZER AS BANDEIRAS DAS TROMBETAS

Se um brasão puder ser transposto sem o escudo para várias superfícies, como uma bandeira, é um brasão correto da perspectiva heráldica.


Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:

(21) Sed si loquamur in vexillis et in vexiculis quæ portantur in tubis, quarum natura propria est ut ad os tubatorum portentur, quia plane jacentes portantur, tunc facies vel rei designatæ pars anterior non debet respicere tubam, sicut hastam. Non enim est tuba pars anterior, sed superior, et ideo debet respicere partem anteriorem illius vexilli, tuba plane jacente portanti. Et prædicta vera in dubio.

(22) Quandoque de proprietate armæ est quod respiciant, ut si portentur duo animalia se invicem respicientia vel unum respiciens aliud. Tunc non est locus prædictæ investigationi, quia in incertis non certis locus est conjecturis (D, 45, 1, 137 [1]).

(21) Mas se falamos das bandeiras ou bandeirolas que se trazem nas trombetas, das quais é próprio, como se trazem junto à boca dos trombeteiros, que se tragam como se estivessem deitadas rente ao chão, a face ou a parte dianteira da coisa desenhada não deve, então, observar a trombeta, como se fosse uma haste. Com efeito, a trombeta não é a parte anterior, mas a superior, por isso, trazida a trombeta deitada, deve observar a parte anterior da bandeira. Na dúvida, o já dito é verdadeiro.

(22) Às vezes é característica das armas voltarem-se para outro lado, como o seria se se trouxerem dois animais voltados um para o outro ou voltados para algo. Não há, então, lugar para o já investigado, porque no incerto, não no certo, há lugar para conjecturas (D, 45, 1, 137 [1]).

Notas:
[1] D, 45, 1, 137: Continuus actus stipulantis et promittentis esse debet (ut tamen aliquod momentum naturæ intervenire possit). [2] Cum ita stipulatus sum "Ephesi dari?" inest tempus: quod autem accipi debeat, quæritur. Et magis est, ut totam eam rem ad judicem, id est ad virum bonum remittamus, qui æstimet, quanto tempore diligens pater familias conficere possit, quod facturum se promiserit, ut qui Ephesi daturum se spoponderit, neque diplomate diebus ac noctibus et omni tempestate contempta iter continuare cogatur neque delicate progredi debeat, [...] nullus est conjecturæ locus (O ato do estipulante e do promitente deve ser contínuo (no entanto, de modo que algum momento possa intervir ao que lhe é próprio). [2] Como estipulei assim, "ser dado em Éfeso?", há um tempo: qual se deva tomar? Pergunta-se. É mais razoável que remitamos toda a coisa ao juiz, isto é, a um homem-bom, que avalie em quanto tempo um pai de família diligente pode cumprir o que tiver prometido que fará, de modo que quem tiver prometido que dará em Éfeso não seja coagido por patente a seguir viagem noite e dia, menosprezada qualquer infelicidade, nem deva andar tão suavemente que pareça digno de repreensão, [...] não há nenhum lugar para conjectura).

Comentário:

O improvável leitor já deve ter percebido que nas minhas ilustrações dou apenas o escudo das armas, ou, noutras palavras, omito os ornamentos externos. É que na minha incisiva opinião o timbre, os suportes, a divisa etc. são parafernália para-heráldica, tanto que a sua evolução seguiu um critério estável: distinguir quem tinha um status social superior. Assim, o timbre surgiu para distinguir as linhagens nobres das plebeias; o elmo, para distinguir os graus de fidalguia; o coronel, para distinguir os títulos nobiliários. Há, ainda, outra evidência, esta de natureza técnica: o desenho heráldico clássico é bidimensional, ao passo que o dos ornamentos externos costuma ser tridimensional.

Trombeteiros trazendo as armas de Florença (de prata com uma flor de lis aberta de vermelho) no Scoppio del Carro.
Trombeteiros trazendo as armas de Florença (de prata com uma flor de lis aberta de vermelho) no Scoppio del Carro.

Posto isto, do trecho que publico hoje talvez se possa tirar uma lição que, com bom humor, chamo de teste da trombeta. Tal como se lê no De insigniis et armis e se vê na imagem acima, o campo de um brasão que se traz numa trombeta é uma bandeirola, geralmente quadrada, estendida na haste desse instrumento. Como ficariam as armas imperiais brasileiras nesse suporte? Assim:

Armas imperiais brasileiras na forma de bandeira heráldica.
Armas imperiais brasileiras na forma de bandeira heráldica.

Não é preciso ser versado em heráldica para captar univocamente a identidade dessas armas. Está tudo aí: campo de verde com uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, circulada por uma orla de azul, carregada de vinte estrelas de prata (1). Portanto, as primeiras armas nacionais do Brasil passam com louvor no "teste da trombeta". E as nossas segundas armas, assumidas pela República?

Escudo das armas nacionais brasileiras: de azul com cinco estrelas de prata, postas como a constelação do Cruzeiro do Sul; bordadura de azul, debruada de ouro, carregada de vinte e sete estrelas de prata.
Escudo das armas nacionais brasileiras: de azul com cinco estrelas de prata, postas como a constelação do Cruzeiro do Sul; bordadura de azul, debruada de ouro, carregada de vinte e sete estrelas de prata.

Antes, devo dizer que o brasão republicano se tornou uma perene fonte de lamúria no meio heráldico brasileiro. A meu ver, há uma boa dose de hipocrisia aí. Primeiro, porque o escudo dessas armas é perfeitamente correto: de azul com cinco estrelas de prata, postas como a constelação do Cruzeiro do Sul; bordadura de azul, debruada de ouro, carregada de vinte e sete estrelas de prata. O resto são os famigerados ornamentos externos, e aqui cabe, com justeza, crítica: uma estrela gironada de verde e ouro, debruada de ouro e vermelho [1]; uma espada de prata, guarnecida de azul com debrum de ouro e um escudete de vermelho, carregado de uma estrela de ouro [2]; um ramo de café frutado à destra e outro de fumo florido à sinistra, tudo de sua cor [3]; um resplendor de vinte pontas de ouro [4]; um listel de azul com a legenda REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL no centro, 15 de novembro à destra e de 1889 à sinistra, tudo de ouro [6]. Em suma, um escudo simples e correto, mas sobrecarregado de seis ornamentos externos!

Armas nacionais brasileiras. Imagem disponível no portal da Presidência da República.
Armas nacionais brasileiras. Imagem disponível no portal da Presidência da República.

Em meio à lamúria de que falei, de muito se tem acusado Artur Zauer, o engenheiro que criou o brasão, nomeadamente de pouco saber de heráldica, o que provavelmente é verdade. Mas, quase por coincidência, um ano depois, Humberto I, rei da Itália, reformou as armas nacionais desse país. O grande stemma foi ordenado assim:

Il grande stemma dello Stato è formato da uno scudo di rosso alla croce di argento; cimato dall'elmo reale colla Corona di Ferro; sostenuto da due leoni, o d'oro od al naturale; attorniato dalle grandi insegne degli ordini equestri italiani; posto sotto un padiglione regio, sormontato dalla corona reale ed accollato al fusto del gonfalone d'Italia, che ha l'aquila d'oro coronata sulla punta, la cravatta azzurra e lo stendardo nazionale bifido e svolazzante. (Regio Decreto n.º 7.282, Serie 3, del 27 novembre 1890) (2)

Se o ilustre leitor tiver contado como eu, são igualmente seis ornamentos externos. No entanto, duvido muito de que alguém, especialmente algum monarquista, se tenha queixado de tal excesso. No fim das contas, talvez Artur Zauer tenha simplesmente reproduzido uma moda, tratando de adaptá-la às convicções do novo regime.

Voltando ao "teste da trombeta", as armas nacionais brasileiras ficariam assim numa bandeira quadrada:

Armas nacionais brasileiras na forma de bandeira heráldica.
Armas nacionais brasileiras na forma de bandeira heráldica.

Acho que permanecem reconhecíveis, mas a particularidade do escudo redondo e o seu encolhimento no meio de tantos elementos exteriores diminuem o grau de reconhecimento. As segundas armas nacionais do Brasil também passam no teste, mas diria que com nota pouco acima da média de aprovação.

Rematando o experimento, segue-se que quanto mais reconhecível for um brasão transposto a uma bandeira quadrada, mais correto é do ponto de vista heráldico, por ser a sua identificação menos dependente do escudo e dos ornamentos externos.

Notas:
(1) Para detalhamento da minha reprodução, leia-se a Nota 7 da postagem de 09/01.
(2) "As grandes armas do Estado são formadas por um escudo de vermelho com cruz de prata; timbrado pelo elmo real com a Coroa de Ferro; suportado por dois leões, ou de ouro ou de sua cor; cercado pelas grandes insígnias das ordens de cavalaria italianas; posto sob um pavilhão régio, rematado pela coroa real e sobreposto à haste do gonfalão da Itália, que tem a águia de ouro sobre a ponta, o laço azul e o estandarte nacional bífido e esvoaçante." (tradução minha)

Nenhum comentário:

Postar um comentário