As armas e insígnias de dignidade são as assumidas em função do exercício de certa dignidade, como os bispos e grande parte dos monarcas.
Do Tractatus de insigniis et armis (1358), de Bártolo de Sassoferrato:
(1) Horum gratia de insigniis et armis, quæ quis portat in vexillis et clypeis, videamus. Primo, an hoc sit licitum; secundo, an eo casu quo licitum est, qualiter sint portanda et pingenda.
Circa primum dico quod quædam sunt insignia dignitatis vel officii, quæ potest portare quilibet habens illam dignitatem vel officium, ut insignia proconsularia et legatorum (D, 1, 16, 1 [1]; D, 1, 8, 8 [2]), sicut de facto videmus hodie insignia episcoporum, et ista potest portare quilibet habens illam dignitatem, ut dictis legibus. Aliis autem portare non licet, immo portans incurrit crimen falsi (D, 48, 10, 27, 2 [3]). Et idem puto quod illi qui portant insignia doctoratus cum non sint doctores, teneantur illa pœna.
(2) Quædam sunt insignia in modum singularis dignitatis, ut videmus quilibet rex, quilibet princeps et ceteri potentiores habent arma et sua insignia, et ista nemini alteri licet deferre vel sub rebus suis depingere (C, 2, 14 [4]; N, 17, 16 [5]). Quod tamen intelligo principaliter, sed accessorie non est prohibitum, ut in signum subjectionis superponere insigniis propriis insignia regis, domini vel comitis vel communis; et hoc consuetudine observatur.
(1) Vejamos, pois, sobre as insígnias e armas que alguém traz em bandeiras e escudos. Em primeiro lugar, se isso foi permitido; em segundo, caso tenha sido permitido, de que modo se hão de trazer e pintar.
Acerca do primeiro, digo que certas insígnias são de dignidade ou função, as quais pode trazer qualquer um que tenha a dignidade ou função, como as insígnias proconsulares e dos legados (D, 1, 16, 1 [1]; D, 1, 8, 8 [2]). De fato, vemos hoje as insígnias dos bispos: pode trazê-las qualquer um que tenha essa dignidade, como nas citadas leis. A outros não é permitido trazê-las; melhor dizendo, quem as traz incorre no crime de falsidade (D, 48, 10, 27, 2 [3]). Por isso, penso que quem traz as insígnias do doutorado, mas não é doutor, seja submetido a essa pena.
(2) Certas insígnias são como de uma dignidade singular, por exemplo: qualquer rei, qualquer príncipe e os demais poderosos têm as suas armas e insígnias, as quais a nenhum outro é permitido contestar ou pintar nas suas coisas (C, 2, 14 [4]; N, 17, 16 [5]). Com relação a isso, entendo que de forma principal, mas acessoriamente não é proibido, como sobrepor as insígnias do rei, do senhor, do conde ou da comuna às próprias insígnias em sinal de sujeição, e esse costume é o que se observa.
Comentário:
Partir e repartir para entender como a estrutura se articula e o sistema funciona é a base da ciência ocidental desde a sua origem remota na Grécia antiga. É assim que Bártolo de Sassoferrato principia o seu tratado: classificando as insígnias e armas. Considerando que o fez a partir da observação, já que não havia proposta anterior, é preciso reconhecer que a sua classificação é bastante sagaz, tanto que se tornou perene nos estudos heráldicos. Com efeito, o critério é o armígero e à pergunta sobre a licitude das armas, o autor começa pelo mais fácil: os bispos. Não há dúvida de que podem trazer as suas armas e as insígnias da sua dignidade. Mais que isso: quando Bártolo escrevia, não só era comum que os bispos tivessem brasões, mas também usassem as armas diocesanas, especialmente das dioceses às quais eram vinculados senhorios, como os pariatos e eleitorados eclesiásticos, respectivamente da França e do Sacro Império (1). Resquício disso é o costume de compor as armas pessoais com as da administração eclesiástica, ainda presente na maioria dos países germânicos.
Além disso, a menção dos bispos esconde algumas curiosidades históricas. A primeira é que a heráldica eclesiástica foi a derradeira a se estabelecer, em virtude da oposição inicial da Igreja contra o uso de um sistema semiótico originado de atividades que estavam vedadas ao clero: a guerra e o torneio. Como resume Edouard Bouyé em artigo de 2001:
Si les clercs ne font massivement usage d'armoiries que dans le courant du XIVe siècle, c'est qu'elles ne sont alors plus liées au contexte guerrier de leur naissance. Pendant longtemps, les clercs n'ont pas besoin d'armoiries. On a vu leur répugnance à faire usage d'un écu, bouclier de guerre, pour les représenter : il était plus convenable de placer dans le champ du sceau un ou plusieurs meubles évoquant la famille ou le siège épiscopal que de les représenter dans un scutum. (2)
Por outro lado, das armas pessoais, as episcopais são as que permanecem mais atuais nas sociedades ocidentais hodiernas: enquanto a maioria dos estados soberanos passou a encarar o uso de brasões por pessoas físicas como assunto privado do cidadão, a igreja, na sua última regulamentação da matéria (instrução Ut sive sollicite, publicada nas Acta Apostolicæ Sedis de 1969, p. 334), dispõe: "Sive Patribus Cardinalibus, sive Episcopis conceditur, ut generis insigne adhibere possint" (3).
A segunda curiosidade é que, como já disse, inicialmente os bispos assumiam as armas das suas dioceses e foi depois que passaram a trazer armas gentilícias ou devocionais (4). Ora, é o contrário do que aconteceu às outras armas de dignidade que Bártolo cita: as dos soberanos e senhores laicos. É algo tão interessante que permite compreender outras armas que permanecem usuais: as nacionais e subnacionais que têm origem feudal. Neste sentido, a lusofonia dispõe de um exemplo muito ilustrativo: a Casa de Bragança.
Com efeito, segundo Anselmo Braamcamp Freire na Armaria portuguesa (1908), as armas primitivas do duque de Bragança são de prata com uma aspa de vermelho, carregada de cinco escudetes de azul, sobrecarregados de cinco besantes de prata. Qualquer um que conhece o brasão de Portugal identifica aí elementos comuns: o campo de prata, uma peça de vermelho, os escudetes das quinas. Sendo Afonso de Portugal, o primeiro duque, filho natural de Dom João I, diferençou as armas paternas ao melhor estilo medieval: transformou a bordadura em aspa e como os escudetes a carregaram, tirou os castelos. É que no momento em que isso ocorreu, as armas reais ainda eram as pessoais do rei.
Primeiras armas do duque de Bragança: de prata com uma aspa de vermelho, carregada de cinco escudetes de azul, sobrecarregados de cinco besantes de prata. |
No fim do século XV, estas coisas estavam mudando. Em 1485, cessaram os acrescentamentos às armas reais por ato unilateral do monarca em meio a alguma convulsão política, denotando que deixavam de ser entendidas como assunto privado do chefe da dinastia e passavam a ser encaradas como assunto de estado (5). Daí que em 1498, quando a linhagem real estava sob a ameaça de extinção, Jaime de Bragança, jurado príncipe herdeiro, assumiu novas armas: as do Reino, diferençadas por um lambel de prata de dois pendentes, com dois escudetes quadrados, partidos de Aragão e de Aragão-Sicília, brocantes sobre os pendentes (6). Portanto, as armas ducais não eram mais as legadas por Afonso de Bragança à sua descendência, mas a da dignidade principesca, ainda que exercida provisoriamente por alguns meses.
Em 1640, quando o duque de Bragança se tornou, enfim, o próprio rei de Portugal, a mudança estava completa: Dom João IV assumiu, obviamente, as armas da dignidade régia, e o título ducal passou ao príncipe do Brasil, daí as suas terceiras armas: as do Reino, diferençadas por um lambel de ouro de três pendentes.
Terceiras armas do duque de Bragança (príncipe do Brasil): as do Reino, diferençadas por um lambel de ouro de três pendentes. |
Mas a evolução não parou aí. Em setembro de 1822, o duque de Bragança declarou a independência do Reino do Brasil e deu-lhe um novo brasão: "em campo verde uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, sendo circulada a mesma esfera de dezenove estrelas de prata em uma orla azul" (Decreto de 18 de setembro de 1822). Evidentemente, refiro ao príncipe regente Dom Pedro de Bragança, aclamado imperador do Brasil no mês seguinte.
Armas do Império do Brasil: de verde com uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo, circulada por uma orla de azul, carregada de vinte estrelas de prata. (7) |
Como o estado brasileiro se constituiu já como nação em construção, o decreto é claríssimo quanto à natureza do brasão: "será d'ora em diante o escudo de armas deste Reino do Brasil [...]". Por conseguinte, conclui-se que as armas do imperador do Brasil sempre foram de dignidade. Efetivamente, quando precisava imprimir um caráter mais pessoal, o monarca usava, ao que me consta, de outra insígnia: o seu monograma. Enquanto isso, em Portugal, ante essa mesma necessidade, reassumia-se uma variante das primeiras armas da Casa de Bragança: de prata com uma aspa de vermelho, carregada de cinco escudetes de Portugal antigo (8)(9).
Armas da Casa de Bragança: de prata com uma aspa de vermelho, carregada de cinco escudetes de Portugal antigo. |
A meu ver, isso pode ter influenciado o diferente modo como os republicanos lidaram com os símbolos da monarquia que tinham acabado de derrocar num país e no outro. No Brasil, o brasão parecia intimamente vinculado à dignidade imperial, ao passo que as cores da bandeira tinham um caráter nacional mais consolidado. Em Portugal, era o brasão que consolidara esse caráter, ao passo que as cores da bandeira pareciam mais vinculadas à monarquia.
Enfim, caro leitor, veja que do texto de Bártolo se pode tirar uma lição mais estreita, ou estrita ao seu contexto, mas precisamente por ser o primeiro tratado sobre a matéria, também enseja uma perspectiva histórica ampla, cheia de aspectos muito interessantes.
(1) Segundo Edouard Bouyé (2001): "Aux XIIe et XIIIe siècles, les armoiries figurant sur les monnaies et les sceaux sont surtout les armoiries diocésaines ; les armoiries familiales ne sont utilisées qu'ensuite. Au cours du XIVe siècle, les insignes pontificaux (crosse, mitre, croix) permettent d'identifier comme épiscopales des armoiries de famille, auxquelles les armoiries diocésaines ont tendance à céder le pas" ("Nos séculos XII e XIII, os brasões que figuram sobre as moedas e os selos são sobretudo as armas diocesanas; as armas familiares são usadas apenas em seguida. No curso do século XIV, as insígnias pontificais (báculo, mitra, cruz) permitem identificar como episcopais as armas de família, às quais as armas diocesanas têm tendência a ceder passagem"; tradução minha).
(2) "Se os clérigos fazem massivamente uso de brasões apenas no decurso do século XIV, é que não estão então mais ligadas ao contexto guerreiro do seu nascimento. Durante muito tempo, os clérigos não têm necessidade de brasões. Viu-se a sua repugnância a fazer uso de um escudo, broquel de guerra, para representá-los; era mais conveniente colocar no campo do selo uma ou várias figuras evocando a família ou a sé episcopal do que representá-las num scutum." (tradução minha)
(3) "Defere-se tanto aos padres cardeais como aos bispos que possam empregar brasão de armas." (tradução minha)
(4) Nem todos os clérigos provinham de linhagens armíferas, daí que assumissem armas com elementos alusivos a certa devoção ou ao pertencimento a um instituto de vida consagrada. São estas as armas devocionais ou de fé e talvez sejam a chave da resiliência da heráldica eclesiástica na contemporaneidade. De fato, hoje são o tipo predominante.
(5) Como se pode consultar na citada Armaria portuguesa de Braamcamp Freire, as armas primitivas do rei português são de prata com cinco escudetes de azul, besantados de prata, postos em cruz, os dos flancos apontados ao centro. Em 1260 e 1383, receberam acrescentamentos: Dom Afonso III acrescentou uma bordadura de vermelho com castelos de ouro e Dom João I, as pontas da cruz de Avis à bordadura. O primeiro ascendeu após a deposição de seu irmão mais velho; o segundo, após a extinção da primeira dinastia. Miguel Metelo de Seixas em artigo de 2010 arrazoa argutamente: "Ciertamente, los orígenes de la bordadura (sic) y de la cruz son diferentes, pero en ambas existe el mismo sentido político de incorporación en las armas reales como forma de conferir una insignia específica a la causa de los soberanos cuya realeza tuvo que establecerse en detrimento de un primogénito con más derechos dinásticos al trono" ("Certamente, as origens da bordadura e da cruz são diferentes, mas em ambas existe o mesmo senso político de incorporação nas armas reais como forma de conferir uma insígnia específica à causa dos soberanos cuja realeza teve de se estabelecer em detrimento de um primogênito com mais direitos dinásticos ao trono"). Em 1485, Dom João II — ouvidos os seus conselheiros — endireitou os escudetes dos flancos e tirou as pontas da cruz.
(6) Nesse momento, as diferenças heráldicas da Casa Real não estavam de todo sistematizadas. Dom Jaime adotou os dois elementos que se vinham usando: o lambel, também chamado banco de pinchar na heráldica portuguesa, e as armas da linhagem materna, no caso, da rainha Leonor de Aragão, sua bisavó.
(7) Devo chamar a atenção para algumas particularidades dessa minha reprodução. A primeira é que escolhi propositalmente o mesmo desenho da esfera armilar usado nas armas nacionais de Portugal para evidenciar um detalhe por vezes mal entendido: não é raro ver o conjunto da esfera com a cruz como se aquela estivesse brocante sobre esta. Isso faria da cruz a figura principal, com o defeito de se pôr cor sobre cor, porém o decreto não só é claro quanto à disposição desse conjunto ("uma esfera armilar de ouro, atravessada por uma cruz da Ordem de Cristo"), mas também explica por que a esfera é a figura principal ("desejando eu que se conservem as armas que a este Reino foram dadas pelo Senhor Rei Dom João VI, meu Augusto Pai, na Carta de Lei de 13 de Maio de 1816"). Em termos vulgares, a cruz está enganchada na esfera. O desenho usado nas armas nacionais portuguesas favorece a percepção disso porque as armilas estão um tanto levantadas, ao passo que num desenho plano ficam perfeitamente alinhadas à travessa da cruz, daí o azo à confusão. Outra particularidade é que fui muito estrito no desenho da orla, fazendo-a do tamanho regular (um doze avos da largura do escudo, à mesma distância do bordo deste), sem os filetes de prata que vieram acrescentar-se para não se descumprir a regra dos esmaltes, o que, em se tratando de uma peça secundária, não me parece nenhum pecado mortal. Enfim, carreguei a orla com vinte estrelas, o número de províncias que o império teve desde 1853.
(8) Denominam-se de Portugal antigo as armas portuguesas sem a bordadura de vermelho com os sete castelos de ouro. Com essa bordadura, são ditas de Portugal moderno. A distinção entre antigo e moderno refere ao que expliquei na nota 5.
(9) Miguel Metelo de Seixas em artigo de 2018 informa: "O príncipe herdeiro Dom Carlos, quando recebeu o título ducal em 1884 (sic), passou a usar as respectivas armas; depois de rei, voltou a usá-las sempre que queria vincar que a sua presença tinha um caráter particular, não oficial". A julgar por esta webpage, continuam a ser usadas pelo pretendente Duarte de Bragança.
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